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A rubrica da Madalena Patusca III


Eram duas e um quarto quando lhe bati à porta. Recebera a carta nem há vinte minutos e puseram-se-me logo insustentáveis tanto as pernas como o coração. Procurei anos e anos agarrar-me a todas as horas tépidas. Inutilmente. Cada fim do dia era um fim. E nem me esforçava muito por tentar reter o Sol no céu, até o conhecer. Hoje de tarde, pôs-se tudo em um emaranhado de nevoeiro sujo, de rugidos industriais assustadores e de frio. Sobretudo frio. Um frio pior do que o de antes. Hoje de tarde pôs-se tudo Inverno. Mas já nem apetece acobertar-me mais como outrora. Vou desembestada pelas ruas da cidade e sou toda a cidade, como ele é da cidade e eu sou dele. - Como assim, não me procures mais? - Estava deitada na cama em roupa interior, vesti o roupão e desci os três lanços de escadas até à caixa do correio. Quando a abri com aquela chave pequenina e vi a sua letra fiquei eu desse tamanho. - O que quereria ele dizer com não me escrevas mais? - Esperava-o nessa tarde e até lhe preparei um bocado de vinho quente, para que tomasse logo à partida e se pusesse quente, bolas, quente. Não aguento mais vê-lo naquele constante estertor. Senti uma contradição de inconsciência; será isto o desamor? Todo o postiço do mundo a oprimir-nos a ambos e termo-nos encontrado é coisa de se atirar ao rio todas as desavenças com a sorte. Aquela mansidão inteira, o seu colo vasto, horizontal, como uma savana a perder de vista, a beleza do seu olhar parado na nossa eternidade. Sonhei com isto vezes sem conta. - Não te respondo? Estás acabado? O quê? Jamais. - Veio-me tudo isto à ideia e estava o Natal à porta. Seria certamente uma ideia diferente nos últimos vinte e cinco anos. Um bacalhau a dois. Bolhas de azeite e o cheiro bom a comida partilhada. Um dente de alho esmagado, umas batatas e couves cozidas em sal, ovos e risos e vozes plurais. Que saboroso que isto seria.
Como a minha fome não é a sensação de quem saltou uma refeição, e o meu modo de frio nunca foi o de quem passou uma noite ao relento, tive de remendar tudo na minha cabeça, dispondo ainda de um palmo de chão para assentar ideias sobre este homem.
Dizemos: fome, cansaço, medo e dor. Dizemos estas coisas sem termos de facto algum modo letal destas nos acabarem realmente. São palavras prisioneiras e nós ainda temos a liberdade necessária para acabarmos com elas definitivamente.
Naquele dia em que lhe bati à porta, levantou-se dentro de mim uma vaga violenta de esperança. A desilusão dissolvia-se debaixo do seu olhar vibrante e o Inverno tão perto. Não me pareceu mais possível que o mundo existisse só a um tempo. Estéril e estagnante contra o qual já não era capaz de imaginar um fim.
Avancei carregada daquela sofreguidão própria dos que raramente esperam conseguir. Eu era a bastarda, bibliotecária ingénua, antipática e cheia de circunspecções no guarda-roupa. Não fora talhada para outra coisa, mas também ele não, e por isso batia certo. Era exacto. Pensei em raptos e coincidências, flores murchas na entrada, iluminadas na saída e até ao fim. Pensei que a vida até poderia ser rica, considerada e orgulhosa. Sem ser só páginas quebradiças e crestadas de um livro descontinuado. Aquele homem e o risco do seu cabelo, a sua pança e até o olhar pendurado punham-me o espírito em ordem. Merecia-me toda a consideração viva, inquieta e deslumbrada. Aquele homem tinha de ser o meu amor para sempre. - O que queres dizer com ameaçares-me o amor? Tu és o meu amor!
A luz, espertinada, rodeava a praça inteira e as paredes musgosas do seu prédio, de um verde negro feio. Dentro daquele espaço curto havia um Natal construído pelos vizinhos. As luzes das varandas alcantiladas e os tapetes vermelhos agrafados aos paralelos. O boneco assustador de um pai natal sentado na esplanada do café por baixo da sua casa, com uma garrafa de vinho na frente e um olhar de vergonha. Os transeuntes. Tanta gente a ultimar coisas sem importância e eu a perder a coragem. Um único problema de título: como é que isto avança agora, toco-lhe à campainha e depois?
Recolhimento vivaz. Ele não deixa o seu abrigo, vi-o de cá de baixo, sentado à janela a desesperar ainda. - É Natal Ulisses, anda cá ter. - Pensei.
Chega um metro de superfície e liberta uma pequena multidão de desavisados. Ninguém sabia sobre o meu drama desta tarde. Sentei-me um pedaço em um banco defronte à sua janela. Era suposto ele ver-me de imediato. Mas não, estava atento era aos passantes, via-lhe nos olhos, mesmo a esta distância. - Não desvies o olhar. Olha para mim. Olha para mim a olhar para ti.
Por fim viu-me. Uma coisa dentro de mim, como um pistão a entrar e a sair era o seu olhar. Durante aquele breve encontro contei-lhe tudo o que lhe vinha responder só com os olhos. Passei uma vida inteira a guardar histórias, para contá-las depois de velha. Estarei já velha que chegue? Ter-me-á escutado?
Decerto que este homem é o mais belo homem de todos os homens do mundo. Só pode. A Clarice sempre me disse que quando me apaixonasse, finalmente, seria por um homem assim. Suava profusamente pelas palmas das mãos. Haviam pequenas explosões de plasma ao nível do meu estômago, erupções de medo puro, picadas, nada que me detivesse. Ao pé da prisão que foi a minha vida inteira, há agora um jardim com um pequeno miradouro pregado no abismo. Dele pendem sardinheiras violetas e escorre uma água brilhante, cor-de-prata que pende em caudal por um buraco localizado ao centro.  Dois tentilhões encorpados e um bando de pardais varejam a vegetação. Levanto-me, percorro duas léguas de praça, volto ao assento. Olho para cima. Não me tirava os olhos do corpo. Abraço-me a mim mesma, sorrio estulta, nem bem sei que faço. - Ele vê-me. Ele vê-me! - Digo de mim para mim. Ele está agora em todos os risos e rostos da minha frágil vida, é a boca que só penso em beijar e o resto da vida por onde conto as horas. Além da linha do metro, vêem-se as últimas casas antes dos campos e do arvoredo. Um Outono a dar posições. Aqui, imagino-me tão longe das grades, um desafio a murmurar-me do segundo andar. Percebi a sua irritação, pois ele é um homem destruído e não é nunca fácil aos destruídos se recomporem no Inverno.
Acenou com a mão e eu subi. - Feliz Natal Madalena.


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