- Isto o quê? - Ficou sem resposta.
- Isto é isto e que mais haveria de ser? - Disse-me à saída. - E aquilo não era coisa alguma. Nem dito nem feito. Pareceu-me uma interjeição cheia de palavras.
Em outra ocasião fomos jantar fora: "Ao Veneno da Madrugada", um restaurante cheio de más pretensões mas boas recomendações aqui e ali. Todos os pratos diziam-se com nomes esquisitos, muito embora a comida me parecesse exactamente igual à de outros lados. E todos os empregados arrastavam consigo uma frescura suja deliberada, nas roupas e nos cabelos e barbas. Nos olhos e até no discurso. Como se quisessem parecer ainda mais estranhos que os nomes da comida. Foi ele quem o escolheu. Talvez pensasse que deveria aparentar outra idade e disposição, diferentes daquelas pelas quais me apaixonei. Para me impressionar, de algum modo.
Encontrámo-nos ao pé da entrada e tentei abraça-lo, mas já vinha a mexer na memória e só dizia: "Merda, merda...merda", entrámos directos ao pequeno saguão.
Eu fui descalça, só porque a minha mãe andou descalça no tempo inteiro dos dias imensos que levou a trazer a roupa lavada da lingueta do rio até ao meu pai, sentado na borda de pedra, se apaixonar por ela. E também, porque ao pesquisar o restaurante achei que este gesto o impressionaria.
Ele reflectiu por alguns segundos sobre os meus pés nus e respirou tão profundamente que até o julguei às portas de um enfarte. Perguntou-me como podia eu exalar um odor tão cálido, tão esplêndido e floral?
- Do meu jardim, suponho? - Respondi-lhe incerta. - E do dia do cinema tens alguma coisa a dizer-me?
- Foi bom termos conseguido ver o filme até ao fim, apesar de tudo. Não achas?
- De tudo o quê? - Inquiri.
Mais silêncio no pórtico da entrada, o empregado veio lento e suado e ao seu comentário, conduziu-nos logo a uma mesa sombreada na parte de trás, junto ao corredor que levava à cozinha. Havia aí um sortido de quadros bizarros, uns pendurados, outros postos no chão e ademais, vários bricabraques atirados ao acaso da decoração mal ajuizada.
O "Ao Veneno da Madrugada" tinha ainda assim uma boa variedade de saladas e queijos, daquelas em que ao comensal é pedido sem nada lhe dizer, para se levantar e ir servir-se do que conseguir. Metade dos empregados perdia-se nos telemóveis. O cozinheiro parecia só ter olhos para a ajudante, diz-se chef e sous-chef, eu sei, só que ambos tinham um ar acentuado de sopeiras e não me apeteceu ser nem fina nem correcta, depois de o ver quase anão, comprimido pelo peso colossal de se encontrar em público. Não havia sinais evidentes de ninguém que mandasse ali, abandonaram-nos na mesa aos nossos próprios recursos. Ele adorava queijo, já o sabia de outras gratas descobertas obscuras e compreendi a sua escolha em um instante. Tentei ser o mais circunstancial possível.
- Porque escondeste isto de toda gente?
- Tinha medo.
- Medo de quê? De um restaurante?
- Não sei Madalena, não sei mesmo. Vais querer entradas além da salada?
Voltei a pôr-lhe a mão na mão, como no cinema, pois julguei vir a ser esta relação um filme demorado, e tentei aconselhá-lo calmamente a aproveitar-me. Ele aprovava tudo com a cabeça. Eu negava, ele assentia sem questão. Quando terminei por mero cansaço, ficou naquela mesa, entre os pedaços cúbicos de gouda e edam, pelo meio da salada de rúcula aromatizada com vinagrete, uma reconstituição mental da sua vida inteira adiantada no tempo para meu benefício, até onde lhe permitiu a memória. No momento em que lhe pretendia dar a absolvição o empregado retornou com um prato de azeitonas marinadas em azeite e óregãos. Na outra mão empurrou-nos a interrupção providencial em parceria com a travessa de presunto laminado. Fiquei alarmada.
- E é isto, - disse ele - é sempre isto.
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