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Vila do Conde


para Rui Pedro Tendinha

Dormi pouco. Fiz trezentos quilómetros. Julguei ver-te várias vezes no caminho. Encontrei os teus cabelos soltos numa estação de serviço. Ao abrir sem querer o guarda-luvas redescobrirem o teu cheiro. Por duas vezes pensei na tua boca em estado de pura provocação. Eras quase tu e nunca me dizias nada. O cansaço deixa-nos tão vulneráveis.
Um bom amigo levou-me para o Norte. Achou por bem que mudasse de paisagem, de companhias. Na noite em que chegámos bebemos tanto, ele ainda mais do que eu. De manhã não se recordava do fim da noite. Perguntou-me várias vezes se não tinha feito nenhuma asneira e não se mostrava tranquilo quando lhe dizia que não. Como se eu não fosse de confiança no que respeita a recordações. Havia um rio, havia rosas. Eu acho que tivemos sorte. O meu amigo só me pedia que não o deixasse sozinho, que tinha medo de não voltar a encontrar o caminho do hotel e no hotel a porta do quarto. Dormi sozinho. Antes ainda li alto uma tradução de um poema de um poeta chinês afeiçoado aos pirilampos.
Por todo o lado as pessoas eram simples, acolhedoras, quase pobres. São coisas que se notam por pequenos indícios - palavras, roupas, dentes - que tudo alteram, e as tornam humanas. Ao meio-dia fomos para a praia. Havia vento, a areia magoava as plantas dos pés, miúdos apanhavam estrelas-do-mar que depositavam na orla húmida da areia onde lentamente se contorciam. Eu mergulhei nas águas. O meu amigo não, sentia-se podre, dizia. Não largou a T-shirt nem tirou o boné. Eu abri os olhos dentro de água para que ela os lavasse e senti a minha cabeça muito quente, prestes a explodir, coisa que nunca antes tinha experimentado. As pessoas protegiam-se dentro das barracas de lona listrada, azul e branca. Algumas jogavam ao prego, outras comum coisas que retiravam de cestos. O meu amigo dizia-me que aquilo ali não existia, que era outro mundo e depressa ficou impaciente. Fomos num sábado, viemos num domingo. Eu gostava de ter ficado mais tempo. Talvez ali pudesse finalmente livrar-me de ti.

Pedro Paixão

"Amor Portátil"
Edições Cotovia, 2000

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