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Um filho que não se chama assim.


Tenho dois filhos, um tem vinte anos e a outra dezasseis. A explicação estereotipada das abelhas e dos pássaros, das florzinhas...não sei... não funcionou de todo. Talvez por minha inépcia, ou talvez que por enquanto, tenha funcionado melhor num que no outro, resta saber. Os dois juntos são o cão e o gato e ambos insistem que não fazem mal a uma mosca. É verdade. Sou eu quem mata todas as moscas, melgas e aranhas cá de casa, e ainda que em muitos momentos destes anos todos, aqui e ali me parecessem bicharocos terríveis, toda esta experiência vem sendo uma zoologia bonita de amor, repleta de macacadas e aves de voos tristes.
Ou isso, ou então aqui aplica-se aquela velha apologia de que tudo está destinado a encontrar o seu próprio caminho. Tentei ensinar-lhes isto de rosto sério mas eles olharam para mim e desdenharam tudo com um encolher de ombros. Não são parvos nenhuns os meus filhos, e nesta urgência de aprender a ser pai, ensinaram-me eles a constante lembrança de não falar coisas à sorte.
É preciso vê-los como eu os vi, já tão resplandecentes mesmo cobertos de líquidos pingados e restos de polpa da mãe, olhos cerrados contra a luz, desconfortáveis gomos, postos a respirar ar contrariados, ainda agarrados ao cordão que jamais desaparece da sua vista interior. Não digo que seja preciso assistir a todos os nascimentos, e estar ali à espera daquela ligação inata no exacto momento da primeira abertura do olhar, quase como fazem os patos ao nascer, não. O que é preciso é começar cedo a aprender, e mal sairam do útero os meus filhos, aprendi logo a ter medo. É a melhor e primeira coisa que um pai precisa de aprender, o medo. Purguem-se todas as pedagogias liberais em um mesmo fogo de uma vez, nada o substitui.
Porque o medo incondicional anda sempre de mãos dadas com o amor. É isto que as mães pato sabem de início (mesmo que nem saibam que sabem, sabem-no) é também isto, esta coisa de se ser pai, não discorre de experiência alguma, cuidar de filhos é um terror que assusta mas que sabe melhor que sexo. Se não for assim, um de nós está a abordar esta questão de uma forma fundamentalmente errada.
Tenho dois, poderia ter vinte, o medo que tive no primeiro, não se dissipou em nada com o segundo, pelo contrário, exponenciou-se, porque todos os perigos não recebem desconto do tempo. Nada disto é coisa de lana-caprina. Faz-nos mais exigentes, mais musculados, menos focados nas ninharias e mesmo assim totalmente exaustos. A protecção nunca termina, erra, mas nunca desiste. Falha, mas nunca nos frustra muito além do ponto de não retorno, é um motor perpétuo. - E depois, acontece-nos o inesperado. - O meu filho (o mais velho), fez-me ser avô sem que eu tivesse voz na matéria, e de repente, retorno vinte anos atrás nos meus medos. Com a ideia de que se me esgotaram todas as reservas, e de que todas as partihas de terror já se haviam fechado no seu desígnio, vejo-me recuado e aflito novamente, atirado ao dobrado da paternidade onde só me apetece duplicar esforços para salvaguardar esta criaturinha, este neto. Uma palavra que nunca mais esqueci.
De facto, este espanto surgiu-me pela primeira vez junto com o outro que já me era conhecido, e o segundo fazia-se mais de filho na minha frente muito por causa do primeiro. Ia puxando pelos sorrisos inequívocos e pelas palavras certas para se sentir mais meu filho do que pai. Todo o seu corpo parecia invadido pela angústia. E foi aqui que percebi, e pus-lhe a mão aberta diante do peito a fazer de parede suficiente forte para os três; o meu filho sentia o mesmo medo que eu, e, como há vinte anos eu não soube, ele também não sabia a que este se devia. Achei precioso. Entre estes dois momentos, a força da viagem inteira surgia-me com mais nitidez.
O que acontecera subitamente, dera-se tão depressa que ele nem sequer tivera tempo de se dar conta do que se estava a passar. Ali, na nossa frente, deitado no seu colo, o medo mexia-se às escondidas e foi como se uma sintonia automática nos ajustasse aos três. O amor escolheu juntar-nos novamente a uma Terça e o resto do futuro seriam mais dias cheios de pulsações.

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