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Textos Devolvidos III



Aquele Céu de um Cinzento Cristal

O rumor fino das pessoas que passam pela marginal ainda em obras de alargamento suplanta o das marés vivas de encontro às rochas. Até em dias de nevoeiro cerrado engolfam o ruído sonolento da sirene de vapor, em efeito, o compasso da sua passagem contínua e embirrenta, só destrói a idílica paz marítima deste lugar de istmo rasurado dos mapas comuns.
Uma tarde, David estava nas traseiras a tirar fotografias ao céu, quando percebeu que existiam demasiadas pessoas novas em Cabo Alvo. Como se de repente se tivessem reproduzido em número, do mesmo modo que o fazem os ratos, ou os insectos de bando, exponencialmente, por mero mecanismo de sobrevivência.
Visto tudo em conjunto, era preciso reconhecer que a vida moderna tinha muito más intenções. Pareciam andar todos à deriva, a falarem cegos e sozinhos, alheios a tudo. Deixou de as fotografar, e foi à cozinha dar dois goles de uísque para não se lembrar de meter um outro ansiolítico pela goela abaixo.
O senhor doutor que apareceu, no dia de Santa Cecília, falou-lhe como a sua mãe, e veio por seu pedido. Não o obrigou a abrir a goela e dizer “Ah!”, não o auscultou com dedos ou instrumentos frios. Aliás, o cheiro do álcool etílico até lhe provocava enjoos, mas o bafo asséptico que lhe entrava pela porta, provocou-lhe certezas de que este seria mesmo um senhor doutor a sério.
- Bom dia David. – Saúda-o o médico. – Já viste lá fora? Estão a reestruturar toda a zona, de cima a baixo, a prepararem-se para as vendas de Natal. É tão comum agora que já nem parece fazer diferença de como era antes. – David retorquiu com um grunho. -Tão banal, não achas? Nesta altura do ano até concordo contigo. O melhor mesmo é nem sairmos de casa. Mas, só por esta altura, ouviste?
David sentiu uma espécie de sufoco, uma pequena opressão no peito não auscultado, devia de ser coisa do uísque, ou pior, deste maldito Inverno tão quente. Pegou no telefone e pesquisou os seus sintomas, antes que o médico lhos apontasse. Amiúde a mãe enviava-o, com instruções precisas de como salvar o seu mundo.
- Desculpa David. É má altura para ti?
- O senhor doutor crê que toda esta invasão é normal? – Pergunta sem pousar os olhos fora do ecrã. - Banal, diz você? Como mais além, as marés vivas ou os ventos frios? – Aponta-lhe a janela da baía. - Não há nada de banal na morte de um bom lugar, senhor doutor, nada. Se antes vivia aqui na paz do silêncio, agora desci a um inferno cheio de pessoas felizes por estarem vivas. O atrevimento desta gente! Sentir-se feliz por viver...se se puder chamar aquilo de vida. Sinto-me nauseado, a vaguear pelo sétimo círculo senhor doutor. É só isso. Escusava de ter vindo.
O médico não respondeu. Conhecia-o desde pequeno. Olhou para o compartimento vazio do congelador e fechou as portas do frigorífico em fúria. Abanou a cabeça.
- Matas-te de dia para dia, sabes disso não sabes? Estás magro que dá pena.
- Oh! – Exclama David. – Mas que coisa tão insípida de se dizer. A minha irmã vem todas as manhãs na sua furgoneta vermelha. Traz-me comida e recriminações muito melhor enjeitadas que essa. Falamos constantemente pelo telemóvel. Ainda há dias me trouxe um saco com nozes e duas compotas diferentes. Talvez me esteja a matar, talvez me queira tirar daqui, não sei. Tenho esperança que acabe por me envenenar com a sua marmelada caseira. Já não lhe suporto a conversa cara a cara. Primeiro faz-me o relatório dos incidentes, o inventário minucioso das desgraças mais recentes, só depois é que me deixa os presentes e os avisos. Fito-a em pura hipnose o tempo todo. E o senhor doutor, o que o traz aqui? A minha mãe sabe perfeitamente que o seu filho continua doido, falamos ontem por mensagem. Não era preciso enviar mais emissários em meu socorro.
Ficou hesitante, mirando-o como o rapaz que conhecera, amarrado a um computador o dia todo. Queimado não se sabe se pela morte do pai, se por alguma incisão negra na cabeça que o afastava das pessoas como se estas carregassem alguma epidemia letal. Em roupão e de cigarro apagado, sentado à mesa com um copo na mão, David, embora calmo, tinha uma palidez de cera e uma agitação quase imperceptível nos músculos menores.
- Sinto-me mal senhor doutor, sim. Pronto, agora é que entornei o caldo. Nunca me senti assim. – Murmurou numa fria tranquilidade. – Quando não tenho uísque bebo sangue de gente. Deixe-me passar que já se me dá a sede maldita. Pode ir saindo, decerto tem algum relatório para apresentar à minha mãe.
O médico meteu-se à sua frente e começou a tirar objectos da sua sacola. Instrumentos, livros, uma resma de papéis. Trouxe igualmente uma caixa térmica portátil. Abriu-a e encheu o congelador de David Parente com todo o género de embalagens cristalizadas em gelo. O rapaz figurou tudo o que disse com os dedos, mal se mexeu.
- O que é que falta acontecer a seguir? – Indagou-o.
A frase acertou-lhe como uma bofetada. David agarrou-se ao telemóvel e estremeceu.
- O que quer dizer com isso? Não basta esta intromissão à minha privacidade?
- Não, não basta. – Admoestou o médico. - Olha para ti David? Desliga-te um bocado e olha pela janela. – Virou-lhe a cabeça. - Estás tão pálido, vês? Não fomos feitos para observar o mundo através de uma máquina, rapaz! Olha, vá. Com quem falas tanto por essa ‘coisa’, se não tens amigos, não queres saber de outras pessoas sequer. Que poder tem ‘isso’ sobre ti?
- Falo com a minha mãe, senhor doutor. Falo com a minha irmã. Faço jogos com os meus dois sobrinhos. Tem dias que bebo tanto que até chego a pensar por mim mesmo. Por vezes senhor doutor, por vezes até pareço que consigo ouvir o meu pai no outro lado da linha a falar-me no tom de voz da minha mãe. Vá-se embora, peço-lhe.
Poderia parecer estranho, mas foi a partir daí que o médico teve a certeza de que lhe seria muito difícil ocultar-lhe os seus pensamentos mais secretos.
- Também já tive longas conversas com o teu pai, - diz-lhe - e com uma enternecida gravidade que muito me impressionou. Talvez pelo facto de a tua mãe nunca ter feito grandes esforços no sentido de me conhecer, quando afinal, em determinado momento das nossas vidas, tu poderias muito bem ter sido uma espécie de meu filho.
- Como?
- Deixa isso e vai ver o mundo lá fora David, vai saber porque anda tanta gente por Cabo Alvo, porque enfeitam as ruas, porque não levantam voo as gaivotas. Vai viver David, vai viver lá fora, peço-te eu a ti.
- Está a pôr-me nervoso doutor. Não deveria tratar assim uma pessoa doente.
- Não precisas de ficar nervoso. Ainda rebentas. Tens a barriga já tão opada que rebentas de certeza. Posso só perguntar-te porque vieste viver para aqui? É uma casa um tanto grande para alguém que vive só.
- Era a casa do meu avô. Tenho todo o direito de estar aqui.
- Claro que sim.
- Doutor Andrónico, que mais posso fazer por si? Já fez o seu papel, deu-me o sermão, encheu-me o congelador, enfim. Vá lá fazer o relatório mensal à minha mãe. Prognóstico: doido. Ainda. Certo?
- Quem tu? Tu David, doido? Não! – Afirma o médico num vagar. - Trouxe-te comida porque a tua mãe me pediu, sim, mas trouxe-te algo mais importante. Isto – passou-lhe para as mãos a pilha de folhas, amarrada por um cordel, que retirara antes da sacola – Foi o teu pai que o escreveu. Nunca disse nada a ninguém. Nem sequer a tua mãe sabe que escrevera este livro. Deu-mo assim como está dias antes de... Agora dou-to a ti. Considera-o a minha prenda de Natal.
- Quanto mais conheço as pessoas mais aprecio os telemóveis – respondeu David – o meu pai escreveu um livro, e depois de tudo, foi a si que o deixou?
- De todos os modos é teu agora. Deverias lê-lo, far-te-á bem.
- Você já...
- Já o li sim, e por isso tenho a certeza que a leitura deste livro será a tua cura definitiva.
- Mas...
David levantou duas folhas e leu a dedicatória. Sorriu, como se esperasse há muito que a alegria lhe chegasse pelo correio.
- Não fazia ideia que os psiquiatras também podiam ser malucos. – Afirma. - Doutor Andrónico?
O médico guardara as suas coisas em silêncio e saíra. Deixou a porta entreaberta ao ar fresco e David a ler.

Enviado a um concurso
2017

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