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Bernardo Bertolucci


A minha última recordação do trabalho deste grande mestre, foi a de uma noite de grandes chuvas em que fui exorcizado pelo filme "The Dreamers" (2003). Esta foi a altura em que senti que o realizador me examinou nu, com uma caixa de ferramentas para reparar males da alma. Veio a ser o penúltimo filme que dirigiu, e indiscutivelmente um dos seus melhores, espantou-me os mau humores todos como que com um ramo de urtigas.
Bertolucci tinha uma forma muito diversificada de trabalhar, e contudo, é possível seguir-lhe os traços estilísticos em qualquer um dos seus filmes. Visceral mas encantador. Epopeico mas extremamente intimista em simultâneo. Foi sem sombra de dúvidas um dos derradeiros mestres desta arte que tanto amo, o que agora nos deixou. Qualquer um dos seus filmes acendia-nos uma fogueira em pontos distintos da alma, e tinha este extraordinário toque de midas, para decifrar identidades secretas nos seus personagens, partilhando-as connosco. O volume do seu trabalho tinha de tudo um pouco menos de vulgar; desde frescos épicos, como são o caso "1900" (1976) e "The Last Emperor" (1987), a histórias profundamente pessoais e carregadas de erotismo como o citado "The Dreamers" e "The Last Tango in Paris" (1973) passando por tocantes e complexas histórias de amor "The Sheltering Sky" (1990) e "Stealing Beauty" (1996), narrativas assentes na incessante procura pelo amor, que Bertolucci encarava ao jeito de "road movies", sem nunca se desligar do aspecto mais fundamental da história as pessoas-personagens.
No início da sua carreira, debruçava-se constantemente em temas mais rudes, dramas carregados e thrillers políticos muito duros e acutilantes. São disto exemplo o filme "Il Conformista" (1970) baseado na obra homónima de Moravia, sobre um homem que se atrapalha na sua própria consciência e acaba por se auto-destruir. A película é meticulosamente tratada com apontamentos regulares de brutalidade gratuita e dureza. Um trabalho extraordinário na interpretação desta obra levada ao cinema e um testamento já bem cedo da qualidade ímpar do cineasta. Um homem que nasceu com o instinto congénito para fazer bom cinema. 
Deixa-nos um corpo de 25 filmes e muita saudade da sua arte inquietante.

Bernardo Bertolucci (1941-2018)


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