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As Crónicas do Senhor Barbosa XIV


Clareara-se o dia. As nuvens pareciam um outro mundo só montanhoso feito de cal e pendurado lá em cima, em cima da sua janela.
Notoriamente o senhor Barbosa perdera a batalha contra a própria determinação, mas quiçá ainda se pudesse salvar algo desta sua guerra.
Lá fora, na praça lavada de paralelos, estava uma mulher parada ao lado de um dos pilares dos arcos. As outras pessoas passavam para aqui e para acolá, porém, aquela mulher não se mexia do seu lugar. Tinha um pescoço delgado e a cabeça atirada para trás, com os olhos presos à sua janela.
- Não pode ser. - Pensava o Senhor Barbosa. No entanto, a sua razão esforçava-se por romper os véus da descrença e por compreender a situação. - Devo abrir a janela? - Continuou nos seus pensamentos. - Não. Não será nada comigo. Admirará apenas o edifício, certamente. - Todavia, de modo algum conseguia desviar dela o olhar, também. Pareciam ambos trancados um no outro. Fechados pelos olhos e oblívios a tudo o resto. Foi ela quem rompeu este elo. Faz-lhe um sinal com o braço, um aceno, um convite, talvez? Ele levanta-se e abre mesmo a janela. Do seu poiso comunica-lhe a pergunta gestual: Eu? Ela agitou afirmativamente a cabeça e adicionou um sorriso iluminado à resposta.
O Senhor Barbosa impulsionou-se pelas escadas abaixo e pelo caminho ia penteando o cabelo e a barba com os dedos, limpando remelas, mordendo os lábios, ajeitando as roupas, perguntando-se várias vezes se aquilo lhe estaria realmente a acontecer...ao sair pela porta, ela já ali estava, junto a si.
- Posso saber o que me quer? - Pergunta-lhe ele.
- Penso em si há muito tempo - respondeu a mulher sem deixar de o olhar nos olhos - hoje decidi-me a vir conhecê-lo.
- Em mim? Que disparate! Então, porquê hoje e não em outro dia qualquer?
- Porque todas as coisas chegam na sua hora. E é esta a nossa hora.
Estas palavras soavam-lhe enigmáticas, mesmo assim o Senhor Barbosa sentia-se incapaz de as duvidar. À força de insolúvel, a sua situação tornara-se tão intolerável que alguma coisa teria mesmo de lhe acontecer. Mesmo que fosse um sonho ou uma alucinação alcoólica, sabia que algo dramático precisava de lhe acontecer.
- Sim - diz ele com um ar tonto - tem sido uns anos muito estranhos. Deveria ter aguardado por este dia, não é?
- Você sabe bem por si próprio que cheguei a tempo. - Diz a mulher com uma voz aveludada.
O Senhor Barbosa sentia-se invadido por uma impressão confusa, mas deliciosa, de alívio: se a mulher aparecera precisamente hoje, isso significava que tudo o que acontecia era governado por alguma força externa a si e que podia repousar por fim e abandonar-se a essa potência superior.
- Sim, é verdade, chegou a tempo.
- Eu sei. - Afirma ela.
No entanto, havia ainda qualquer coisa que lhe escapava: Mas porquê? Porque é que pensava tanto em mim?
- Porque o amo.
A palavra amo fora pronunciada muito docemente, mas toda a praça ficara de repente cheia dela.
O Senhor Barbosa baixou a voz: - Ama-me?
- Sim, amo-o.
Já antes ouvira estas palavras serem-lhe ditas, mas nesta manhã ele via-as pela primeira vez, tais como são quando vêem sem serem invocadas, sem ser esperadas. Estas palavras entraram no eco da praça como um milagre. Totalmente inexplicável, mas ao Senhor Barbosa parecia por isso ainda mais real, porque as coisas mais elementares existem neste mundo sem explicação.
- Verdade? - Perguntou ele, e a sua voz habitualmente demasiado forte era agora apenas um sussurro.
- Sim, verdade. - Insiste a mulher.
- Mas eu sou um homem banalíssimo.
- De maneira nenhuma.
- Sou, sim.
- É belo.
- Não.
- É meigo.
- Não - diz ele, sacudindo a cabeça.
- Irradia doçura e bondade.
Ele só abanava a cabeça: - Não, não, não.
- Sei como você é. Sei-o melhor do que você.
- Não sabe nada de mim.
- Sim. Sei.
A confiança que emanava dos olhos daquela mulher era como um banho maravilhoso e o Senhor Barbosa desejava que este olhar, que o inundava e o acariciava, durasse o tempo do resto da sua vida.
- De verdade? Eu sou assim? - Titubeou ele.
- Sim. Eu sei. - Responde a mulher.
Era puro como a vertigem: aos seus olhos, ele sentia-se delicado, meigo, belo, sentia-se nobre como um rei. Foi como se subitamente se enchesse daquelas mesmas nuvens que os cobriam. Achava-se mesmo adorável. - Deus meu! Ainda nunca me acontecera achar-me assim, tão deliciosamente adorável.
Ainda assim o seu espirito interior continuava a protestar:
- Mas mal me conhece, de onde, como, porquê?
- Conheço-o há muito tempo. Há muito tempo que o observo e você nem sequer desconfiou de nada. Sei-o de cor - dizia ela e, com os dedos atrevera-se a percorrer-lhe o rosto. - O seu nariz, o seu sorriso aberto, a sua barba indomável...
Continuou ali, diante dele, com os olhos nus, que o percorriam como se lhe quisesse coleccionar todos os pormenores do corpo, glorificando-os. Toda a sua postura se virava para os olhos dele como o girassol se vira para o astro-rei.

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