Avançar para o conteúdo principal

As Crónicas do Senhor Barbosa XIII


Fechada a última caixa, o Senhor Barbosa, atirando um murro à mesa, levantou-se, deu um safanão às calças, passou a mão pela barba crespa e densa que lhe dava ao rosto uma expressão feroz e, com uma voz retumbante, despediu-se: "Adeus velho mundo, adeus, adeus. Adeus esperança tão efémera. Puta que pariu os retornos, novos erros nunca apagarão os antigos." - Talvez tenha vertido aqui alguma lagriminha manhosa, daquelas que nos assaltam quando menos as esperamos. 
Contava uma mão cheia de décadas no corpo e bastava-lhe de indigência caseira. Isto passou-se no maravilhoso dealbar do Inverno que fugia de ser mais tempo de Outono e gozava de completa liberdade.  
Anulara a renda da casa frente a um senhorio exultante, despedira-se da EDP e da Indáqua que muito prontamente lhe cortaram os serviços de assistência - já não se importava - Podia morrer lá fora à chuva se quisesse, de joelhos, sobreaguado no declive da rua das Mós. Ao por os pés fora da casa, o seu rosto parecia mais encantador do que na véspera. Tudo nele era o contrário de delicado. Estava já na rua, de costas para a casa e um raio singular de luz punha-lhe os ombros arredondados e o pescoço direito, os cabelos fartos e vaporosos a fruirem do vento, a boca clara e aberta. Parecia de novo o homem que em tempos quis fazer de si o melhor que de si mesmo conseguisse fazer.
Um terrível estrépito que combinava o grosso da chuva a cair e a chegada do último metro, relampejava-lhe o estado de graça, mesmo assim o Senhor Barbosa não vacilou. Sentiu que a cidade não tinha fim, e que mesmo a seguir, haveria outra cidade infinita e outra ainda no horizonte. E que o infinito de lugares possíveis neste mundo se abririam todos para ele.
Até os carrascos que faziam parte dos seus maus sonhos, se afogavam debaixo da chuva intensa perante os seus olhos. Parecia mesmo uma abertura, uma liberdade sem precedentes. Um recomeço. - "É um erro isto. Faço-o apenas por falta de opção, mas está tudo errado. Eu não retorno, não recomeço...eu nem sequer respondo por falta de vontade de dizer o que me apetece. Talvez tenha medo, talvez não mereça mesmo nada. Quando o faço, sai-me tudo mal e só destruo, só faço mal...é um erro." - Não o era. Mas, por ser ainda quem é, o Senhor Barbosa, não deixava solta toda essa ferocidade necessária à sua libertação incondicional, tampouco permitia que esta o definisse como novidade. Matara-se com um tiro na têmpora, antes de sair de casa, mas ainda tinha a suspeita recalcada, de que nem possuía o talento para se roubar da própria vida. O que poderia tanto significar uma depressão flutuante e insidiosa, como uma revolução de meia-idade.
O Senhor Barbosa, por baixo da chuva, não tinha a certeza. Em certas alturas exactas de lucidez, chegava a pensar que havia sido assassinado da casa para fora, como uma maneira de se sacudirem as migalhas e nódoas da toalha de mesa da refeição de antemão.
Se sofria com isto, ninguém sabia. Guardava o sofrimento com uma tal frieza que só os seus ocasionais acessos de cólera levantavam um pouco a ponta deste véu pesado.
Esquizofrénico e vulnerável, por nada se destacava e abraçava esta novidade como qualquer coisa de letal. Moderara-se de imediato, a dez passos da porta da casa, a dez passos do resto da sua vida, e aquele seu olhar febril e inquieto, denotava absolutamente a mão invisível que o conduzia neste apocalipse. Estava definitivamente perdido.
O Senhor Barbosa mandou os homens das mudanças levarem-lhe as caixas para trás e foi implorar guarida de joelhos ao senhorio, como se este fosse a chuva bendita, e também se desmembrou em covardias inexplicáveis de voz e expressão corporal perante os funcionários dos serviços. Desbaratou o que lhe restava de dinheiro para se manter sujo e modesto e recuado perante o medo. Depois de ouvir o que tinha de ouvir, ficou. O Senhorio cuspiu-lhe em cima e contudo nada podia fazer pois o aluguer estava confirmado na lei e ainda nada fizera para o anular. Os contratados da luz e da água pouco caso faziam daquele homem imoral e triste que lhes suplicava por coisas que eram supostas de ser e que, quiçá, até lhes daria algum regozijo na reativação compulsiva, derivado da anterior ferocidade deste cliente tão pouco inteligente. Tudo aceitou. Só queria retornar, só lhe apetecia recomeçar a vida no preciso lugar onde ainda há momentos a deixara. Os livros, a janela, a frustração que o acamava de conforto. Só queria não ter mais medo. E aquele seu lugar comum era um baluarte. 
Para o Inverno ainda faltavam dias, mas não para o Senhor Barbosa.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci

António Ramos Rosa, in "O Grito Claro" (1958)

O Incidente de Plutão (Parte II)

Continuação... Xavier sonhara o corpo de uma loura por semanas, nos intervalos em que se convencia a si mesmo que a amava porque sim. Mas que desacato. Não tinha heroísmos em part-time para dar a ninguém e por isso se pusera a fazer teatro no fim do trabalho como forma de não se maçar a si mesmo. Era um salto à vara espantoso, se de tantos lados que procurou socorro, este lhe chegasse através desta mulher. Doroteia, vista pelos seus olhos era a mulher mais bonita da cidade, e ai de quem o  contradissesse. Não era que o dissesse a ninguém, de todos os modos só se queria deitar com ela e deixar-se adormecer ao seu lado como uma fera amansada. Era tudo matéria de sonhos. - E o que foi que tiveste de fazer pelo teu pai? - Arriscou a pergunta. Não foi pronta a sua resposta, apesar de se perceber na comissura dos seus lábios os indícios de um longo diálogo consigo mesma - precisamos de falar sem rodeios - ouviu depois o rapaz dizer. - Isto é, se queres que fique e te escute. Quer