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A rubrica da Madalena Patusca I


O resto do dia cismei aquele encontro. Quiçá mesmo o resto da minha vida. O coração de um outro é sempre uma escura floresta onde se aventuram apenas os verdadeiros apaixonados. Para o lado oposto da estrada já quase ficava outra terra, e ali não havia quase nada de amor-próprio.
Como foi que ganhei coragem para estar ali naquela praça, naquele dia, naquela hora? Nunca o saberei. A minha vergonha era rija como se imaginaria que fosse o dorso de um rinoceronte. Encouraçada naquela frustração, perante o fim inusitado da faca do tempo, deixei-me estar. 
Isto, até o saber ali, vivo.
Nem sei porque me apetece contar esta vulgaríssima história de um amor estranho. Mas, como poderei resistir à tentação de reproduzir este nosso momento? Juraria, apesar de tudo, que aquele encontro, à deriva do que ambos éramos por dentro foi a grande excitação das nossas vidas. Mal lhe afaguei o cabelo, soube que também ele sempre me amara sem saber. E provou-me. Tocou-me no braço, e depois pegou-me na mão. A seguir levou-me a mão à sua boca e beijou-a, como se as minhas mãos níveas fossem os pés do Cristo.
Os seus dedos eram tão feios. Tinha as unhas mal aparadas, rugas medonhas a desenharem crueldade nos seus dedos insípidos, pelos e uma grotesca configuração do que qualquer mulher espera das mãos de um homem. Tinha até frieiras e pontos gordos do fígado a tentar escaparem-se-lhe pelas mãos. O seu braço esquerdo parecia uma asa partida colada ao seu corpo. E mesmo assim, os meus olhos não me quiseram enganar, só lhe viam beleza e delicadeza. Gotas de orvalho na saliva e gestos ponderados a tocarem-me nos braços e a avançarem pelo resto do meu corpo fora como nuvens de Verão.
Olhem que não estou a brincar. Dessa vez abri ao acaso na cabeça as Poesias do Álvaro de Campos, e por aqui já se apercebem a sorte que me saiu. Mas longe estava eu de prever, na altura, o que aquela manhã me reservaria. Expressamente o guardei até agora, só para vos poder contar como foi.
São estes os mecanismos do destino. E contra estes todas as batalhas revolucionárias resultam inúteis. Queria aquele homem para mim. Queria ama-lo mais por mim do que pelo pouco que ele se amava a si mesmo. Lembrei-me dele no instante em que o conheci. Como pode isto ser? - A memória é como um momento onde vivem todos os sentidos em sintonia, e as mais tristes palavras de todas, juram vingança. E vingam-se, calando-se. - Andei anos a salvar-me de mim própria até o descobrir no Ano Novo, por mero acaso, quando visitava uma amiga que me convidara a uma festa.
No momento que entrava na casa dessa amiga, vi uma mulher de ar perdido e dissoluto a fazer o mesmo na porta oposta, a sua casa. Trazia uma garrafa já aberta na mão direita, e um olhar pronto a acabar o ano em carnificina. Meteu-me medo aquela mulher grotesca, e reparei que a ele também. Antes mesmo de pôr um pé dentro da sua casa já estava a agitar a garrafa no ar e a dizer: "Venho para foder. Para fo-der, ouviste bem." - E ele sobressaltou-se tanto e eu consegui ver tudo isto em uma fracção instantânea de tempo. O tempo necessário para ambas entrarmos, eu, na casa da minha amiga, ela, aquela harpia devoradora, na sua, mesmo ali, defronte.
Entabulei um ensaio de atrasos antes de acabar por entrar e ainda ouvi outras denúncias de porcarias que certas mulheres dizem. Ele estava lívido, branco de cor. Foi aqui que os nossos olhares se cruzaram por mero auxílio.
Todavia, fomos ambos fracos e entramos em portas diferentes. E algum tempo teve de correr até por fim ganhar a coragem suficiente para o abordar naquela praça, em frente à porta do seu prédio, e então, como sempre haveria de ter sido, subir aquelas escadas e entrar finalmente na sua casa.
Foi o melhor momento da minha vida, supus. Isto até deixar correr o que viria depois.

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