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Saudades de ver bons filmes (XVII)


... surpreendentemente góticos e grotescos.




O filme de Robert Aldrich "What Ever Happened to Baby Jane" (1962) vem quebrar muitos 'telhados de vidro' à época. 
O mais patente de todos refere-se ao 'hollywoodismo em queda', em efeito, a drástica mudança do, até então firmemente estabelecido, sistema de estúdio, vigente e perpassante em todos os seus aspectos inerentes, para um cinema libertado, produzido independentemente, e assim, desimpedido do jugo omnipresente da 'fábrica de cinema' dos estúdios que prevaleceu em indiscutível hegemonia até princípios dos anos 60. - Predominantemente durante os anos 30 e 40 do século passado, a vida de um qualquer actor, realizador, ou variedade de artista ligado a esta maravilhosa indústria, nascia, vivia e morria sob a mão controladora destes dirigentes tirânicos.
Neste filme em particular assistimos à história opressora de duas irmãs. Uma, Baby Jane Hudson (interpretada por uma irrepreensível Bette Davis), formada, orquestrada e acarinhada pelo pai, desde a infância, para o sucesso artístico, a crescer falhada, marcada pela frustração. Enquanto que, por outro lado, a sua irmã Blanche (contida Joan Crawford), renegada e esmagada pela ambição do mesmo, acaba transformada em um volta-face off-screen, revelando-se muito mais talentosa e adorada como actriz, anos depois.
Em pura economia Aldrich opta por mostrar tudo isto sem mostrar realmente os rostos das suas actrizes problemáticas, iniciando a película em três momentos de tempo diferentes. O espectador fica imediatamente esclarecido e consegue seguir sem dificuldade a narrativa subsequente.
A história destila imediatamente um 'efeito pigmaleão', no sentido em que observamos a percepção da realidade vista por estas duas irmãs, ambas prisioneiras dos seus destinos, em luta constante. Sacrificadas, sofredoras em seu próprio âmago.
É curioso, e saliento, que ainda que este tenha sido o único filme que estas duas actrizes co-protagonizaram juntas, um azedume constante entre ambas, que daqui derivou, acompanhou-as insensatamente até à morte de Joan Crawford em 1977. Tal rivalidade foi tão clara, que inclusivamente deu origem à excelente série do canal FX (Fox) "Feud" (2017). - Que muito aconselho.
Este é também um outro 'telhado de vidro' que este filme revela além da própria ficção; a questão do que acontece às grandes divas de hollywood, quando estas envelhecem e se tornam aparentemente supérfluas ao processo mineiro da indústria. Jack Warner, também ele o derradeiro grande 'mogul' do sistema de estúdios, para todos os efeitos, deus, como assim eram vistos todos os líderes dos diferentes conglomerados hollywoodescos até esta altura, foi adverso a esta produção. Por falta de confiança em Robert Aldrich, que considerava um tarefeiro menor e também, porque acreditava ser impossível ajustar em linha as personalidades intempestivas destas duas actrizes maiores de outros tempos mais grandiosos. Deitou ali dinheiro ao calhas, por mera arrogância e foi este um dos filmes que acabou por salvar da falência a Warner Bros. Pictures. 
O filme acabou por derrubar um outro inesperado 'telhado de vidro'; o sucesso de bilheteira. A espaços, a Warner Bros. vivia tempos difíceis, sobretudo pela intransigência de Jack Warner, absoluto dinossauro de uma indústria em imparável mudança.
"What Ever Happened to Baby Jane" tocou muitos corações, mais do que seria esperado tocar, e digo-vos em termos de 'spoiler' que aquele escadaria haveria, em si mesma, de receber uma nomeação para qualquer prémio, pois é epívoca à história, essencial. Descubram-na. Vejam o filme e depois diga-me se não tenho razão.


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