Por volta dos meus vinte, vinte e pico anos perdi um amigo à loucura.
Estava só. Atirou-se para baixo de um comboio porque lhe aparecia a N. Senhora na frente dos olhos em todo o lado. Aquilo punha-lhe o mundo todo em desacordo.
Em uma caixa perfeita ia-lhe a cabeça metida no espaço desigual dos comuns, noutra, surgiam-lhe lamparinas, astros ilustrados, putas maravilhosas, crenças de infância queimadas a ferrete directamente no cerebelo, frustrações em cavalgadura, e acabou só alucinado, o meu pobre genial amigo. Só alucinado pela maldita doença.
Ouvia música aleatória do John Cage e fazia abluções com drogas banais para parecer igual a toda a gente. Nunca resultava com toda a gente, só com aqueles que lhe sabiam a razão da loucura. Ele, por vezes, nem fazia caso à própria loucura ou àqueles que a maltratavam com palavras e desdém. Ele, louco, era mais puro que qualquer impostor que se fizesse de 'artista' ou de 'amigo'. ELE era muito melhor. Melhor, porque a capa da loucura lhe concedia a inocência da verdade.
Quando cheguei ao campanário soube que morrera em pleno voo. Éramos tão distintos e porém, as nossas cabeças flutuavam iguais na nortada de Vila do Conde. Apanhei o caminho e fui ver o prior a saber de que morrera o meu amigo. Não falei com mais ninguém, só com o prior, porque, assim como assim, quem via a N. Senhora haveria de ter alguma ligação a esta terra de ninguém. Este disse-me que fora sempre um teórico do experimental, do não convencional e deus estranha estas pessoas. Que a sua vida nunca fora a melodia que tocara, mas os sons que aqueles que dele gostavam ouviam. - O prior lera a entrada do John Cage na Wikipédia e pouco sabia em concreto sobre o meu amigo trucidado nos carris. - Saí rápido e de lá lhe entendi finalmente a dor perpétua. Ai meu amigo, mestre das nuvens, sobrevoavas a própria igreja nesse instante, e, dessas alturas, depois de já te ter chorado e dito bravo, nada mais disse e as nuvens vaguearam pelo céu no mesmo silêncio. Os outros todos, aparentemente bem mais teus amigos, só explodiam entusiastas em projectos de lágrimas falsas que jamais teriam espaço para avançar. A verdade é que a tua morte nos pôs em movimentos inconstantes, e já nada nos podia parar.
Anos depois fui visitar-te à colina dos heróis, junto ao mosteiro, onde fumamos juntos, pela primeira vez a nossa amizade, e tu ainda lá estavas, como se te pusesses de propósito em um salão elegante, a contares as possibilidades das candidatas ao teu toque.
Ao ver-te assim, em uma loucura tão tua, tão distante das más loucuras de agora, só quero que saibas, adorei-te para sempre. E, ainda te adoro.
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