- O que é essa coisa da poesia? - Pergunta-lhe o renitente na rua. - Diz-me lá para que me serve? - O Senhor Barbosa ficou com a língua pesada para respostas imediatas, mas, na sua cabeça, a tapar disfarçadamente aquele protesto mudo, corriam-lhe os mais profundos e belos desejos dos Homens. - Então? - insiste o editor impaciente - Respondes ou não às minhas perguntas? Para que serve aquilo de que te serves para fingires que serves o mundo de alguma maior beleza?
Esta última, mais dramática questão, teve um efeito de praxe naquele homem só raíz. Este homem só chão, posto a renascer para uma teoria inteiramente certa de uma nova vida, achou ser seu dever fazer-lhe espécie dar respostas que não iriam acudir nenhum espírito. Porém, interiormente, remoía-se contra a preguiça de não mastigar apenas os pensamentos. Queria mesmo responder-lhe e, em acto poético contínuo, provar-lhe que a poesia serve apenas uma coisa.
- Dá-me ao menos um exemplo. - Persiste o inquisidor. - Nota bem, um exemplo válido. Nada dessas paneleirices mascaradas em crianças cheias de fome e de frio, cheias de inseguranças mais que pesquisadas e bocejantes.
O Senhor Barbosa vacilou. - "Este homem só diz verdades provisórias e avança golpe sobre golpe para me inferiorizar. Este homem não é meu amigo." - Um exemplo, um exemplo... - Tapa disfarçadamente a boca, porque os melhores exemplos raramente lhe saem por aí. - Depois, por demais encurralado, não teve outro remédio, tapou os olhos com uma mão, a boca com a outra e lançou-se ao abismo daquela inquisição.
- Vamos supor que às duas da manhã, caminha um homem na rua, um vagabundo. Ostracizado. Diz-se poeta debaixo do riso até dos mais próximos. Assim que, este homem, teoricamente falando, anda em busca de alguma verdade pelos escaparates dos caminhos, e rapidamente somos levados a abordá-lo com uma certa profundidade - diz o Senhor Barbosa - estás a ver do que falo? - O dito editor, dito amigo, dito confidente, grosso modo mais algoz do que muitos, acena com a cabeça. Não fez qualquer outro gesto que intentasse alguma sintonia. Abanou o crânio e deixou-se estar à escuta, para o ridicularizar apenas. - Preferes os problemas difíceis? - Insinuou. - Coitadinho!
O Senhor Barbosa que cheirava mal porque não se banhava há semanas inspirou a pergunta e nenhum vómito lhe assomou. Era já uma conquista. - A facilidade é uma máscara que esconde labirintos inextricáveis. Exactamente como a tua presença aqui na minha frente.
- Então, mais uma vez não respondes à minha pergunta? Inventaste essa personagem agora mesmo, ou só me queres convencer de algo?
- Sim, senhor editor, inventei-o mesmo. O que não inventei foi a razão de continuares a convidar-me sem nunca me convidares. Parece que me queres castigar de alguma coisa. O que será?
- Não sei do que estás a falar. Só gostaria que me respondesses. Consegues?
- Consigo pois. Os poetas, como deverias saber, trabalham em fábricas de palavras e operam diferentes graus de produtividade. Contudo, gostam de sofrer por cada palavra que fabricam e não são mais ou menos remunerados por isso. É um terreno metafórico, sabes? Os poetas são em simultâneo os mais pobres e ricos seres humanos que existem ou existiram.
- Maravilhosa essa gaveta onde encerras mais um dos teus absurdos...todavia, a pergunta continua sem resposta. Para quê? - Martela o companheiro desconfiado.
- Oh, é tão simples. Para não se morrer sem termos sido uma nuvem passageira.
- Mas que merda...? - O outro homem afastou-se com um mau humor que só poderá ser explicado por uma história muito pessoal entre aqueles dois, e o Senhor Barbosa caminhou lento em direcção ao mar inspirador.
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