Avançar para o conteúdo principal

As Crónicas do Senhor Barbosa X


Depois de morrer é tudo igual ou um mistério ou uma grande falsidade. Na verdade, pouco se sabe sobre o depois, ou se este aconteceu de facto. Falou-se em muito sangue e numa banheira impossível de se limpar em modos. Todavia, como sempre fazem, as pessoas deitam bufas ao desbarato e quase nada acrescentam de verdade ao que já sabem. A grande tristeza aqui, é que não veio uma alma sequer verificar os factos, fossem estes comprováveis ou não. Muitos casos grotescos desta natureza desumana têm vindo a lume ultimamente. As pessoas andam transtornadas e sucumbem mais à raiva do que era costume. Explodem, explodem..as pessoas saturadas perderam por fim a paciência. O caso mais imperioso que me recorda é o deste exacto indivíduo que só sabia ser gente ao longe e em segredo. 
Disseram-no morto. 
Mas é tudo falso. Queriam-no assim, porque incomodava muito. Não preenchia as caixinhas, nunca alinhava, e a proximidade das pessoas constrangia-o por demais. Não abria a porta, não atendia o telefone, não respondia a nada, não se ajeitava ao papel. Morria de medo que os outros pensassem bem de si. Como se o contrário fosse um ofício de sucesso que temia que alguém lhe apontasse em seu desfavor. - Podemos ou não existir fora dos trâmites normais? - É obviamente algo que faz revolta a quem está por fora da sua cabeça, e ele apressava-se, por regra, a colocar todos na rua. É também uma benesse não enlouquecer longe da empatia e mesmo assim prosseguir sem passar algum estilete afiado nas goelas. 
Tudo isto é uma puta de uma equação de física quântica!
E ele avisou-os. Deus me perdoe se lhe acreditasse mas ele pôs o aviso: "Cuidado", bem visível.  Dois corpos paralelos descarregados sujeitos a uma força tendente a aproximá-los. Quem prestou atenção? Ninguém. Quem percebe de física? Não me façam rir. 
O Senhor Barbosa pensou seriamente nisto, e, concluiu que esta seria a forma mais imaginativa de ser descoberto depois de morto. Como se fosse um prato de comida elegantemente bem apresentado. É rigorosamente imprescindível a apresentação para nos alimentar o palato imaginário. Depois de morto também o preocupava. O Senhor Barbosa queria ter a certeza de que o esparrame da sua morte lhe projectaria o futuro, dado que o presente era esta coisinha sem sal alimentada a whisky e bílis, que insistia e insistia mas que nunca lhe cortava a vida tão rápida e espalhafatosa como uma lâmina afiada sobre o pescoço.
Não é que não carregasse mesmo assim no seu bom coração os inseparáveis. Sim, o Senhor Barbosa tinha ainda gente indissociável de si, apesar de estarem longe ou perto ou em lado nenhum naquele impenetrável segredo que era a sua descida ao Inferno, pois a sua cabeça só lhe atrapalhava a existência, e acabou sozinho por se sentir insultado constantemente na inteligência emocional.
É claramente um paradoxo, mas era assim o Senhor Barbosa.
Posto em tão injusta condição, empederniu-se tanto que sonhava ser a mulher de Job - ao menos o sal não endurece tanto quanto a pedra - mas, era mesmo melhor que endurecesse assim tanto, basicamente, a sua sobrevivência disso dependia.
Funcionou anos e anos e anos sem grandes avarias, contudo, um dia, o Senhor Barbosa chegou a pontos de se assustar com a vontade de passar com o automóvel por cima de alguns desses 'amigos', só para ver se se estropiavam para ali e o deixavam em paz em definitivo. E foi como se lhe transpusessem um novo coração naquele mar de sangue derramado. O Senhor Barbosa não morrera. O Senhor Barbosa quis viver acima dos odiosos e sobreviveu com uma linda cicatriz na cabeça.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

...Poderia ser maior! Poderia ser um escritor, em vez deste blogue vagabundo que... foda-se!

  "On The Waterfront" 1954 - Elia Kazan

O Artista que faz falta Conhecer

Um dia desenhei um rectângulo largo em uma folha de papel-cavalinho, não foi salto nenhum, pois em anos antigos, já me tinha lançado a fazer rabiscos aqui e ali. Em pastel sobretudo, e uma vez cheguei ao acrílico, mas aquilo eram vãs tentativas sem finesse alguma. As artes plásticas são um mistério ainda, e uma das minhas grandes decepções como ser humano criador. Essa e a música. Creio até que terei começado a escrever por me faltar jeito para o desenho e para os instrumentos de sopro. Assim que voltemos ao meu rectângulo. Esquissei-o de vários ângulos e adicionei-lhes cornijas e janelas. Alguns sombreados. Linhas rectas e perspectiva autónoma, cor e até algum peso acumulado. Longe do real mas muito aproximado deste. Quando dei por mim tinha o Mosteiro (Stª. Clara) desenhado, em traços grosseiros e pôs-me feliz ter chegado ali, até me dar conta que cometera plágio. O meu subconsciente foi buscar o trabalho do Filipe Laranjeira ao banco da memória, e sem me pedir licença, copiou...