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"What we've got here is ... failure to communicate"


Paul Newman "Cool Hand Luke"

200 ovos foram preparados (cozidos), para uma das cenas mais emblemáticas do filme "Cool Hand Luke" de Stuart Rosenberg (1967). 
Através da sempre prodigiosa magia da edição cinemática, Paul Newman teve apenas de ingerir cerca de sete ou oito destes, vomitando-os de seguida para um balde de lixo, assim que o realizador gritava "corta". Os restantes foram consumidos pelo elenco e equipa, o que levou à tumultuosa e famigerada epidemia de flatulência durante as filmagens do dia seguinte.
Isto é apenas um insignificante 'fait-divers' deste extraordinário filme, que deslinda as razões de ser do personagem principal e também a sua ascensão a herói entre a comunidade de prisioneiros muito consistentemente bem construídos a partir do romance de Frank Pierson. 
"Luke" é basicamente um perfeito niilista, alguém que deixou de encontrar sentido na existência, e as razões para tal são muito bem esclarecidas no decurso do filme. Por isso se dedica a experimentar limites. Sejam estes quais forem. Acaba condenado e aprisionado em um 'road gang' por se ter dedicado a arrancar as "cabeças" dos parquímetros da sua vila. Só porque lhe pareceu lógico ou sensato fazê-lo.  Ou porque não tinha nada melhor para fazer naquele momento. São coisas muito commumente sucedidas ainda hoje, por mais gente do que se imagina. Reflecte o nosso tempo, pois há um manancial de pessoas a serem distantes daquilo que eram suposto serem, hoje em dia, magotes e magotes, e aqui reside parte da grandiosidade premonitória deste personagem.
E, sobre a cena dos ovos, tudo surge de uma aposta entre o personagem Lucas Jackson (Paul Newman) e o então líder incontestado da caserna dos prisioneiros, 'Dragline' (George Kennedy - Óscar de melhor actor secundário), culminando em uma mudança radical na relação entre estes dois personagens.
A clara negação do todo mais comum, do personagem de Newman, aqui patente na assumpção desta aposta acaba por o conduzir às boas graças de 'Dragline', que o admira, erradamente, pela sua intrepidez, ainda que esta não passe de puro tédio. 'Luke' é um estranho à harmonia facciosa da sociedade, até mesmo àquela que existe dentro de um estabelecimento prisional. Há realmente uma falha de comunicação entre o que se passa na cabeça de Paul Newman, neste filme, e o que por regra está estabelecido como correcto. A história explora-o e a direcção de actores consegue levá-la a bom porto explanado, pois entende-se muito bem a sua intranquilidade, o seu 'ennui' avassalador, o seu martírio auto-infligido. Todos os personagens têm uma pedra pesada nos ombros e reagem a isso, demonstram-no. Não são maus por estarem presos, são maus por não cumprirem as regras estabelecidas. - Muito interessante. Eu acho. Pois também falho muitas vezes em conseguir comunicar aquilo que pretendo da minha vida. Falho em existir.
A meu ver, todos os bons filmes, acabam por ser bons, porque conseguem esse intuito, o de nos colocar no lugar exacto do personagem, ou de nos distanciar diametralmente deste ou de nos sossegar ou de nos explicar alguma coisa que nos é ignota. Seja qual for a vertente aplicada, um bom filme só o pode ser se respeitar os desejos do espectador, de nos fazer sentir afins com o que assistimos. De outro modo torna-se só uma distração (e não há nada de mal nisto também. Precisamos todos de nos distrair das nossas vidas.)
Contudo, parecem-me sempre mais efectivos os filmes onde me revejo. O ego do espectador é sempre o foco do cineasta mais inteligente. É onde este aposta na passagem da história. Mais memoráveis, infinitamente mais próximos. E, onde se toca o espectador com a história, é onde reside a qualidade do todo que a criou.
Muitas vezes me senti 'Luke'. Continuo a acreditar que o sou. O desprendimento continua aqui, só a condição de prisioneiro é que difere. Já atirei pedras ao rio apenas porque me apeteceu, e espantei gaivotas pousadas na areia húmida da praia com grande vigor de correrias. Já abri a boca à chuva e contei comboios pendurado em uma ponte. Inócuos que pareçam estes gestos, senti-me diferente quando os fiz. Único. Especial. 'Cool', Luke, sempre Luke.



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