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As Crónicas do Senhor Barbosa VIII


- Depois me dirás se mais alguém te lavou assim os pés. - Ela arregalava o branco dos olhos, como quando se duvida de tudo por regra, ou se questionam os prodígios entre a sua raridade regular. - Poderás dizer-me que não, mas, acredito que nem os pés do próprio Cristo alguma vez terão sido assim lavados com tanta abnegação e amor. - Purgou o Senhor Barbosa, inteiro pela boca. - Sem asas ou vôos imaginários de fénix destruída, - disse-lhe mais - só amor puro e luminoso, pois que esta extensão das minhas mãos, líquidas em teus pés, é quase um uivo terrível de alguma outra desgraça iminente. Pode ser. Será? Ou isso, ou é a perfeição incansável.
A mulher recuperou os sentidos num abrir e fechar de palavras estranhas. Limpou-se com uma toalha pequena e voltou ao telefone. Agora oiçam a mulher falar sobre um pequeno romance que nem lhe passaria pela cabeça existir até ter colocado os pés naquela bacia:
- Desculpas-me?
Foi isto. Apenas alguns segundos antes do final, para impor alguma ordem na sua exuberante obsessão. Aprendeu a ser regrada, a dar valor à disciplina. Aquilo assustava-a muito. Só procurava uma excitação momentânea quando lhe tocou à campainha. Não trazia planos de futuro consigo. Nunca esperaria nenhum altar de amor eterno. Seria bizarro espera-lo. Era quase grotesco acreditar-se que uma mulher que se entrega a um homem por sua necessidade biológica, precisa de aceitar a premissa de que, ao fazê-lo, está a comprometer-se a alguma relação. Caramba! Vivemos depois do romantismo, quais são as probabilidades de se encontrar um verdadeiro romântico nestes tempos tão rápidos? - Pensou a mulher.
- Só não te desculpo o desinteresse criminoso. - Afirmou o Senhor Barbosa com espuma de sabão pelo queixo.
Contudo, àquela hora inocente da tarde os palhaços tristes, postos nus e em peúgas, em perdidas gravuras de homens tentados, só miravam o Verão nos joanetes daquela mulher, a possibilidade de um futuro cheio de mensagens desavindas e veemências oportunas.
- Não sei bem se ainda queres estar aqui. Queres estar aqui? 
O seu rosto tinha as qualidades físicas de uma placa de vidro delicado, moldada em pagelas de falsos santos. O que pensaria a sua mãe daquele rosto pendular que ambicionava o transtorno punitivo da castidade mas transbordava de sémen pelos olhos excitados?
- Estás melhorzinho agora Barbosa? - Estendeu-lhe as mãos transparentes do outro lado da desolação final. - Tiveste foi um sofrimentozinho na barriga das pernas, não? Foi só isso. Mas estás bem, não se passa nada, pois não? Estás bem, não estás?
O Senhor Barbosa evaporou-se logo em hálitos pouco sedutores e dele emergiu, embrulhado, a imagem às arrecuas de alguém que seria capaz de se oferecer a si próprio para combater a intermitência abusiva da solidão em excesso.
Quando a mulher, já fora da tina quente de água tépida, o voltou a observar, ele era já um homem brutalmente assassinado pelo desprezo comum. Ou novamente assim. Este instante foi apenas um pequeno momento. O termómetro acusava-lhe, com a graça de algum Deus incapaz, a condição de coitadinho para sempre, e assim, para sempre o Senhor Barbosa o seria.




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