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As Crónicas do Senhor Barbosa VII


O Senhor Barbosa viu os padrões da chuva colados a stencil na janela central da sala comprida e ficou algum tempo parado a esperar pela razão nos intervalos das gotas desavindas. Pois naquele instante a rua povoava-se apenas de donos de cães joviais cumprimentando-se uns aos outros e achou-se reles e maligno como um animal doente. O novo ano trouxera-lhe alguma percepção aguçada como todos os novos anos lhe traziam, mas perdera-a completamente entre as passas e as resoluções. Este deja vu era tão impiedoso que já era uma amarga tristeza que o impregnava nos anos novos de isolamento. Continuava a ser o tipo de homem que olha através de janelas, que faz da vida uma camisa-de-forças impossibilitando-lhe os movimentos e também o tipo de homem que persegue causas perdidas com nomes femininos.
E quem visse de fora, pareceria-lhes que continuava igual a antes, só que, agora, tinha noção de que mais um ano se passara e ele, Senhor Barbosa, já não caminhava para nenhum lugar cheio de maravilhas e encantos, algum jorro de esperança gizada pela paciência apenas. Envelhecia sem provas dadas que sequer existira e isto martelava-lhe a enorme decepção de continuar a acreditar-se vivo.
Todavia, algum tempo depois a menina Salette apareceu-lhe em casa, posta em carne palpitante como uma vulva desapreciada há muito. Veio depois dos Reis, e disse-lhe que vinha exclusivamente para foder. Assim mesmo, para fo-der! Vejam só. Até enrolou a língua como se engolisse a palavra em um golfo pastoso. Dissera-lhe que era demasiado tarde para esperar entre as intermitências do desejo o retorno do marido da Mauritânia.
- Mauritânia? - Questionou o Senhor Barbosa - Quem, no seu bom juízo poderá deixar uma mulher como você e ir pôr-se nesses lugares imaginados? Quem?
- Quem? - Responde-lhe ela estalando a alça do soutien. - Pois, quem é exacto... é que os nossos filhos precisam de comer à mesma e visto que eu estou aqui para foder de borla, alguém lá terá de fazer dinheiro para os alimentar.
Aqui, o Senhor Barbosa tomou-a pelo braço e fê-la entrar antes que tudo aquilo lhe custasse.
- Uma bebida? - Solicitou a mulher, olhando em torno. - Não tens grande coisa em casa. Nem sofá, nem quadros, nem TV. Tens uma cama ao menos?
- Barbosa de um raio que nunca mais acabas de morrer, onde é que te meteste agora? - Pensou o Senhor Barbosa, defrontando-se com a obstinação da menina Salette. Tropeçou no próprio instinto a caminho do osso exposto. - Tenho uma garrafa de "Baileys" algures, contando bolor na despensa. Pode ser?
- Tens aqui, querido. Nunca venho de mãos vazias, nem de mãos, nem de nada.
A mulher entrou-lhe na zona de conforto com o espírito de quem penetra em uma sombra húmida na hora de maior calor. Pouco a pouco, como um vulto, um sorriso se foi formando no Senhor Barbosa, acompanhado por um copo ondulado à esquerda e um clarão de mamas expostas rente à janela íntima. Lá fora, o rasteiro arvoredo e os arcos de pedra do jardim todo cagado pelas hostes de cães treinados, prolongavam uma nova dimensão para um possível futuro.
Fechou a porta da rua, finalmente, e apertou-lhe o enxuto das ancas nas mãos esquecidas, ansiando não ter olvidado de todo o caminho à bolina para o ventre quente de uma mulher.
Ela sorria-lhe em carne viva, morna, cúmplice, fazendo-o ganhar volume e consistência na vontade de continuar vivo.



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