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Brilho fosco das Mudanças - Parte 4


continuação...

- Deus nosso senhor! – Exclamou de acanhamento. – Isto nunca antes me havia acontecido.
- Estás bonito, estás, ó Viriato. – Diz-lhe ela. Era a primeira vez que se lhe ouvia a voz barítona. - Aposto que bebeste algum vinho novo, fermentado a martelo, comeste figos maduros ou farinheiras de colorau estragadas, não foi? – Replicou-lhe de mãos postas às ancas fartas. - Sossega lá. Deixa que a Germina já te faz uma canja pura que te limpa os canos dos pés até à alma.
Ele assim assentiu, sem mais nem menos, só pela boa estranheza que o seu toque lhe trazia às entranhas. Germina fez-lhe a canja a voar, e obrigou-o a engolir duas colheres em um longo intervalo. À segunda, Justino teve um vómito erótico que lhe subiu das virilhas até à glote e largou tudo para o prato, mas ela não se melindrou por isso. Sem grandes trejeitos, levantou o saiote e a combinação e colocou a mão dele sobre a sua perna nua. A canja sumiu-se do prato num milagre.
O velho Justino fez contas às intermitências do coração, e tudo somado, concluiu que botão de punho algum o punha naquele estado. Trazia um novo poema no bolso do pijama de flanela, mas naquele dia, pela primeira vez em tantos anos, não se viu disposto em descer até ao salão. Certo de que o tempo não lhe seria indulgente com jogos demorados de corte e galanteios pediu-lhe para que no dia seguinte fosse buscar o que tivesse de seu, não fosse o diabo tece-las, e que trouxesse tudo lá para casa. Urgiu-lhe com os olhos que a casa depois disso seria não apenas sua, mas de ambos. Bastou-lhe aquele momento para descobrir que já não podia viver sem a ter sempre por perto.
Germina adormeceu sossegada com essa ideia, o seu pai, depois de saber, nem pregou olho com a excitação. Um dia depois, ao retornar com a resposta, descobriu um guarda-vestidos repleto de coisas suas no próprio quarto do velho, que resplandecia como um botão polido, todo engalanado num viço de punhos de rosas espampanantes.
O rosto de Justino iluminou-se num fulgor que lhe desceu rápido até aos recônditos fechados do colo, assim num repente, como se saltasse para um vazio alto e mergulhasse com o estômago colado à boca. Quis crer que naquele salto existia todo o heroísmo do amor que lhe faltara a vida inteira. 
- Mas como? – Remeteu-lhe Germina a pergunta.
 Justino endireitou a língua atrapalhada e devolveu-lhe uma jura:
- Estou velho demais para complicar o que é simples. O que te prometo contudo, com todas as forças que me restam, é que, doravante, estes serão os únicos botões a que darei atenção. Estes e tu, minha rosa de fogo abençoado.
Germina Arosa concordou com tudo num choro arrolado, sem perceber ao que ele se referia, ou fazendo de conta que não percebia. Debruçou-se, beijou-o longamente no bico da testa enrugada, e não disse palavra.
Desse momento em diante, Justino tomou-se de tão bons ares, que já nem fazia lembrança dos benditos botões, da perna entesada em inutilidade ou do que mais fosse, excepto de Germina Arosa. Cumpriu a promessa e só teve mesmo olhos para ela. E só para ela escrevia poemas agora.
Um vozeirão de invejas e maledicências subia diariamente as encostas, vindos da aldeia, lá abaixo. Que havia ali coisa do demónio, que o pobre velho caíra sob efeito de algum feitiço, bruxaria, era do que falavam todos. Pois ninguém dava crédito de verdade a um amor assim tão instantâneo. Justino e Germina pouco caso faziam.
O seu sangue adocicou-se no correr das veias, e parecia flutuar quando ela se chegava perto. Apesar do que lhe haviam afiançado os médicos, sobretudo os de mau agouro, ainda viveram juntos, um amor que permaneceu na estranheza do povo, por quase uma vintena de anos. Ele abria-lhe as portas à sua passagem, e descobriu que afinal, os seus beijos até o faziam correr em seu alcanço. Ela deixava-se ver nua quando tomava banho, fechava-lhe as luzes e as torneiras à sua passagem, colhia-lhe as laranjas, ouvia o piar dos mochos consigo e por vezes, até se deixava estar por longas horas, a admirar a sua impossível colecção de botões de punho.
Dormiam sempre juntos, muito agarradinhos, no quarto situado no extremo oposto ao quarto dos seus pais, que cheirava sempre a rosas e à flor da laranjeira. Beijavam-se, trocavam breves histórias do dia, e depois adormeciam.

Justino convenceu-se de que o coração lhe batia cada dia com mais vigor, e Germina, no seu silêncio de poucas palavras, nunca lho desmentiu, justo até ao fim.


FIM

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