continuação...
- Deus nosso senhor! – Exclamou de acanhamento. – Isto nunca antes me havia acontecido.
- Estás bonito, estás, ó Viriato. – Diz-lhe ela. Era a primeira vez que se
lhe ouvia a voz barítona. - Aposto que bebeste algum vinho novo, fermentado a martelo, comeste figos maduros ou farinheiras de colorau estragadas, não foi? –
Replicou-lhe de mãos postas às ancas fartas. - Sossega lá. Deixa que a Germina já te faz uma canja pura que te limpa os canos dos pés até à alma.
Ele assim assentiu, sem mais nem menos, só pela boa estranheza que o
seu toque lhe trazia às entranhas. Germina fez-lhe a canja a voar, e obrigou-o a engolir duas
colheres em um longo intervalo. À segunda, Justino teve um vómito erótico que lhe subiu das virilhas até à glote e largou tudo para o prato, mas ela
não se melindrou por isso. Sem grandes trejeitos, levantou o saiote e a combinação e
colocou a mão dele sobre a sua perna nua. A canja sumiu-se do prato num
milagre.
O velho Justino fez contas às intermitências do coração, e tudo
somado, concluiu que botão de punho algum o punha naquele estado. Trazia um
novo poema no bolso do pijama de flanela, mas naquele dia, pela primeira vez em
tantos anos, não se viu disposto em descer até ao salão. Certo de que o tempo
não lhe seria indulgente com jogos demorados de corte e galanteios pediu-lhe
para que no dia seguinte fosse buscar o que tivesse de seu, não fosse o diabo
tece-las, e que trouxesse tudo lá para casa. Urgiu-lhe com os olhos que a casa depois disso seria não apenas sua, mas de ambos. Bastou-lhe aquele momento para
descobrir que já não podia viver sem a ter sempre por perto.
Germina adormeceu sossegada com essa ideia, o seu pai, depois de saber, nem pregou
olho com a excitação. Um dia depois, ao retornar com a resposta, descobriu
um guarda-vestidos repleto de coisas suas no próprio quarto do velho, que
resplandecia como um botão polido, todo engalanado num viço de punhos de rosas espampanantes.
O rosto de Justino iluminou-se num fulgor que lhe desceu rápido até aos
recônditos fechados do colo, assim num repente, como se saltasse para um vazio alto e mergulhasse com o estômago colado à boca. Quis crer que naquele salto existia todo o heroísmo do amor que lhe faltara a vida inteira.
- Mas como? – Remeteu-lhe Germina a pergunta.
Justino endireitou a
língua atrapalhada e devolveu-lhe uma jura:
- Estou velho demais para complicar o que é simples. O que te prometo
contudo, com todas as forças que me restam, é que, doravante, estes serão os
únicos botões a que darei atenção. Estes e tu, minha rosa de fogo abençoado.
Germina Arosa concordou com tudo num choro arrolado, sem
perceber ao que ele se referia, ou fazendo de conta que não percebia.
Debruçou-se, beijou-o longamente no bico da testa enrugada, e não disse
palavra.
Desse momento em diante, Justino tomou-se de tão bons ares, que
já nem fazia lembrança dos benditos botões, da perna entesada em inutilidade ou do que mais fosse,
excepto de Germina Arosa. Cumpriu a promessa e só teve mesmo olhos para
ela. E só para ela escrevia poemas agora.
Um vozeirão de invejas e maledicências subia diariamente as
encostas, vindos da aldeia, lá abaixo. Que havia ali coisa do demónio, que o
pobre velho caíra sob efeito de algum feitiço, bruxaria, era do que falavam
todos. Pois ninguém dava crédito de verdade a um amor assim tão instantâneo.
Justino e Germina pouco caso faziam.
O seu sangue adocicou-se no correr das veias, e parecia flutuar
quando ela se chegava perto. Apesar do que lhe haviam afiançado os médicos,
sobretudo os de mau agouro, ainda viveram juntos, um amor que permaneceu na
estranheza do povo, por quase uma vintena de anos. Ele abria-lhe as portas à
sua passagem, e descobriu que afinal, os seus beijos até o faziam correr em seu
alcanço. Ela deixava-se ver nua quando tomava banho, fechava-lhe as luzes e as
torneiras à sua passagem, colhia-lhe as laranjas, ouvia o piar dos mochos
consigo e por vezes, até se deixava estar por longas horas, a admirar a sua
impossível colecção de botões de punho.
Dormiam sempre juntos, muito agarradinhos, no quarto situado no
extremo oposto ao quarto dos seus pais, que cheirava sempre a rosas e à flor da
laranjeira. Beijavam-se, trocavam breves histórias do dia, e depois adormeciam.
Justino convenceu-se de que o coração lhe batia cada dia com
mais vigor, e Germina, no seu silêncio de poucas palavras, nunca lho desmentiu,
justo até ao fim.
FIM
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