continuação...
Chegava a pontos extremos, de lhes escrever poemas. Longos
versos jâmbicos, que depois lia em voz alta no salão térreo, virado às vitrinas
que resplandeciam de ouro e madrepérola, naquelas manhãs sem tempo ou luz.
Duas gerações de Viriatos amealharam ali mais de dez mil botões,
muito embora, poucos daqueles raros, que tinham conhecimento de tais despojos,
fizessem fé de que haveria tantos assim no mundo inteiro.
Com o passar dos anos, sumiu-se tão rápida a réstia saúde do seu
corpo, a uma velocidade prodigiosa. Não era nada de estranho, a saúde falha-nos
por vezes, mais ainda, se nem nos apetecer guarda-la com gosto e cuidado, e
todos os médicos consultados assim lho asseguravam. Houve um até, que em
corajosa bravata chegou mesmo a predestinar-lhe um fim prematuro. – Tolo!
- Ou o senhor Viriato se deixa dessas tolices e se agarra à
vida, come e bebe com regras, e aproveita as maravilhas que o viver regrado nos
oferece, ou esta foge-lhe num instante, como um pássaro libertado. Fie-se no
que lhe digo homem!
Justino ponderou sobre aquilo numa volta do ponteiro mais
comprido do relógio, fez de conta que tomou medida ajuizada do que o médico lhe
dizia, sorriu-lhe até, mas pelo breve instante do passar de um suspiro. Depois,
levantou-se abruptamente e proferiu o seguinte, em alta voz entretelada:
- Estou-me nas tintas para a vida ó Jeremias, como estou certo
de que ela também está farta de mim. Nem uma palavra salvo do que me disseste.
E, já agora, mais te digo: estou-me nas tintas para ti também seu pirralho
insuportável. Juízo tinhas tu se fosses visitar os teus pais lá na eira da
fraga, seu sanguessuga ingrato. – Saiu porta fora, com a lentidão orgulhosa que
a perna lhe permitia.
No ano em que mataram à traição o primeiro-ministro, andava
Justino Viriato às voltas com a sua consciência, e não havia olhar mais atento
que não lhe visse a morte a circundar-lhe por perto, já quase lhe bufando no
cangaço enrugado.
- O amigo está pouco falador. Más notícias? – Murmuravam-lhe as
vozes da feira de Santana com um retinir angustiante. – Pegou-se-lhe algum mal
ruim, Viriato? – Insistiam. – Essa cor que lhe enche a cavada dos olhos não me
agrada mesmo nada. – E por aí fora.
Eram falsas vozes, mentirosas a cada sílaba, aguardando ansiosas
pelo seu fim prematuro. Pois, muito embora trouxesse sempre um esgar de
ruindade no rosto, o seu coração era tão grande que todos os conhecidos
maquinavam formas de se servirem dele.
Ao seu lado, e bem entendido por baixo de si, estavam os
propostos titulares à sua fortuna, esses mesmos, que descaradamente lhe
dirigiam a palavra, aqueles que lhe disputavam a atenção pelo mero e singular
interesse do pecúlio, que a queda daquele malfadado telhado lhe deixara na
carteira. Não haviam herdeiros de sangue para todo aquele dinheirão, de modo que,
sendo Justino, o último dos Viriatos, jogavam todos a cartada da simpatia
fingida, - os grandes canalhas - na esperança de verem os seus nomes figurados
num qualquer documento oficial que lhe fosse redigido como se de um testamento
se tratasse.
Anuía a tudo com a cabeça mas desdenhava-os depois lá do fundo
com uma tinha visceral. Nunca fora homem de fazer amigos aqui ou acolá, tinha
escasso interesse nas pessoas. Aliás, para Justino Viriato, as gentes que o
rodeavam naquele lugar do fim do mundo, pouca mossa lhe faziam ao espírito, e
mais depressa se identificaria com um penedo agreste, ou algum filhote de
mocho, do que, com qualquer um deles.
Em Ervedal da Esteira havia uma igreja, um paço antigo que
albergava um gordo inútil que se dizia presidente, um mercado e um café que se
fazia de padaria, servindo pão seco às curtas horas da manhã. Era todo feito de
ruas estreitas de pedras gastas, casas de dois andares, com mansardas em cima
que empoleiravam gente e terreiros inundados a estrume por baixo onde se
afligiam os animais pelos barulhos, e a mansão dos Viriato, no alto de uma
colina bravia, sobranceira a tudo e a todos. Mais tarde ou mais cedo, não havia
alma, mais ou menos desgraçada, que habitasse por aquelas bandas, que ali se
não reunisse numa altura ou noutra.
Justino recebia-os a todos, de coração aberto e sempre com
aquele sorriso de falsete, mas em pose de senhor feudal, com a educação
refinada instituída pela hereditariedade. Porém, desbaratava-os logo de
seguida, com um encolher de ombros funesto, mal estes abriam a boca. Parecia
que a sua esperança se elevava no momento imediato à presença dos vizinhos,
para logo desabar ao som das suas falas. Traziam-lhe todos, os mesmos pedidos e
súplicas, histórias de desmesurada tristeza, rebuscadas algumas. Outras, de uma
simplicidade arrepiante. No fim de contas, fosse qual fosse o relato, ou a
pessoa em questão, todos lhe queriam o mesmo: dinheiro, e pouco mais. Quando temos
bens e temos que dar, não falta quem nos visite.
Dessa feita, pouco se lhe dava ou trazia quem lhe falava, ou o
que diziam. Gostava da simplicidade do silêncio. Por isso se dedicava aos
botões, às laranjas e aos mochos que piavam sim, mas não aborreciam ninguém. No
seu lento passo de moribundo, arredava-se de relações mais íntimas, afastava-as
com um olhar severo, e lá se ia atravessando no caminho de todos, sem
consequências de maior.
Em tempos
chegou a ser professor universitário, e a sua fama académica teria começado
quando apareceu de pijama e cabelos compridos para defender uma tese. Um dia,
já como professor catedrático, no exame final da sua disciplina, disse aos
alunos que podiam trazer os livros que quisessem no dia do exame; os alunos nem
queriam acreditar na sorte deles; Foi uma avalanche de valores que ali nasceram, e também a sua
última aparição em Coimbra. No dia seguinte apresentou-se em frente ao reitor,
com o mesmo pijama lendário e apresentou a sua demissão, recolhendo-se
definitivamente para o Ervedal.
Continua...
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