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As Crónicas do Senhor Barbosa VI


Aos últimos dias do ano encontraram-no ainda a picar um dragão com uma lança de arame, sempre quixotesco, na esperança que o gosto da perdição diminuísse mas não diminuía. - Nunca nada me diminui aqui à espera por um bocado de sorte. - pensou o Senhor Barbosa.
Nisto sentiu uma restolhada imprevista no peito, entre as mamas feitas de desolação, flácida carne de desespero acumulado. Fincou-lhes os dedos por baixo e largou-as, uma e outra vez ao espaço.  Pegava-lhes e largava-as. Duas, cinco, vezes e vezes sem conta. Fazia-o de olhos fechados que os espelhos há muito que os retirara da casa. Também não diminuíam. O Senhor Barbosa lembrou-se muitos anos antes, de ter sido visto por algum outro desgraçado a caminhar nu o fio direito do murete da marginal. Afinal estava-se o ano a acabar e parece que se festeja a renovação, a esperança da mudança no novo. Assim fez e prenderam-no. Não foi a primeira vez que o encarceravam por querer ser livre. Não seria a última.
O Senhor Barbosa, no penúltimo dia do ano reteve-se de chorar surpreendido aquele desconforto que guardava no interior das pálpebras. Assomou à janela de chinelos e pijama de fato-de-treino e tentou gritar contra o fim, mais ou menos direito e rígido, expôs o peito ao ar da rua mas sentiu os brônquios afogados e não lhe saia nada. Aguardando que os joelhos não lhe falhassem também, pensou em sair. Fazia tempo que não saía. Até caminhar perto das janelas já lhe parecia uma andadura de vergonha, mas, como se aproximava o fim quis meter a máscara de mártir no baú da tia Andalusa e sair.
A rua estava repleta de homens sem o patrocínio de deus algum, caixas de gente a mexerem-se automáticas, sem corda. Ao Senhor Barbosa isto fazia muita espécie. Se por acaso levantasse a cabeça, descobriria penhascos debaixo dos olhos. Parou em um banco de praça e intentou acender um cigarro de mortalha. Fumava a própria morte, literalmente. Só que, não havia forma que o isqueiro se acendesse, a pedra soltava uma chispa sem fogo. Sorriu e bufou um compasso pela falta de ar. A esta hora inocente, os caminhos da marginal pululavam de gente igual correndo, andando, ouvindo, distanciando-se e cumprimentando-se uns aos outros em uma linguagem de periquito. 
Dividido entre o medo e a vergonha, o Senhor Barbosa emparedou-se em trânsito pelo meio destas criaturas modernas, na certeza de que o progresso é uma doença perigosa que não se cura com uma caixa de ampolas. Das goelas de crianças renitentes chegavam os primeiros abalos à sua fortaleza inexpugnável. - Nunca deveria ter saído de casa - pensou - muito menos no penúltimo dia do ano. Sábado derradeiro e insuportável.
Este tipo de pensamento de filigrana sempre o acompanhou e as horas frias de vento e salitra, encontraram-no sentado no rochedo mais avançado ao mar que encontrou. Foi um género de planisfério privativo que ali desenhou no penedo. Com torres de defesa e tudo. De vez em quando virava a cabeça e via a irmã daquele senhor que era electricista a marchar desconjuntada em um casulo de spandex. O intrépido casal Neves a remeterem o novo filho às descobertas. A puta da Etelvina, o doce Gaspar Castanheira despreocupado, as hordas e hordas de últimos atletas de fim-de-semana. O Jorge de olhar pungente, a Guida maravilhosa, o seu ano inteiro em revista desde aquele rochedo onde passou o ano inteiro afastado de todos. 
Sorriu novamente.
- Talvez para o ano.

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