Justino Viriato era um
homem que fugia às regras, custódio de uma imensa fortuna e de um juízo mental
irrepreensível.
Apesar de ter um corpo
em ruínas, ou talvez por isso mesmo, deixava que a vida lhe corresse devagar,
sem grandes proveitos de alegria. Acordava com o sol, levantava-se, ia até à varanda somar
pássaros e ventos fortes; depois lavava-se, vestia-se, descia à cozinha e comia
uma laranja do seu quintal, que colhia pontual na tarde anterior e que deixava
pousada na mesa da cozinha para o dia seguinte. As suas laranjas eram amargas e
honestas como devem de ser as laranjas, e Justino jurava manter-se são enquanto
estas assim fossem. Só então é que prosseguia em passo de tempo até ao grande
salão das traseiras para contemplar o seu maior tesouro: os botões de punho.
Fazia tudo com um vagar próprio do avanço da idade, longa o
suficiente para saber, que não existe nada no mundo que justifique a tolice da
azáfama e das correrias. Em
determinado momento já estava tão velho que não envelhecia mais, apenas
apodrecia pontual, como as Estações. Trazia na pele manchas de fígado como hieróglifos secretos, sem ter
quem as decifrasse.
O soalho rangia gravemente sob os seus pés, no seu percurso
quase mecânico pela casa ancestral. Perdia as horas inteiras da manhã no
desvelo de amor que prestava àqueles pequenos objectos polidos, encastres
caducos de outros tempos. Herdara-os, de um vasto e inútil espólio, dos cuidados
extremosos de seu pai, coleccionista nato e precursor inveterado de tão bizarro acervo. Amara-o mais que tudo, mais que à própria família até, e Justino, depois de lhe crescer após a morte, sempre lhes demonstrou o mesmo desmedido apreço.
Tinha um jardim
cheio de mochos. Piavam todos ao mesmo tempo e havia vários tons e sons de
pios. Uns piavam assim, outros faziam que piavam, e outros ainda nem piavam de
todo, apenas pareciam mochos porque se escondiam no meio dos outros,
exactamente como os seres humanos. Justino apontava em um caderninho aqueles que piavam em falsete. Punha-lhes umas marcas invisíveis na existência e depois disparava-lhes a velha pressão de ar, para os manter distantes dos verdadeiros mochos. Fazia isto regularmente e depois dirigia-se ao salão. Para lá arrastava consigo todas as manhãs a perna esquerda, como
um toco inútil, caída faz tempo na desgraça da paralisia, e de igual modo
trazia a fala. Pouco a usava, é bem certo, os mochos quase que falavam por si,
mas quando o fazia, esta saía-lhe arrastada num toque de finados, fruto da
mesma triste maldade que o seu coração enferrujado lhe infligiu.
Vivia assim no finzinho do terceiro quarto da sua vida, sem ter
grandes expectativas ou vontades, sobre o que lhe reservariam os derradeiros
anos da soma daquele viver. Justino pouco se importava, a velhice e o desamparo
comiam-lhe o desejo de viver, pouco a pouco, e já nem fazia caso disso.
Durante o dia agarrava-se afoito ao único prazer que lhe
restava, o raio dos botões. No entanto, em muitas noites, quando adormecia
embalado pelos mochos, secretamente ansiava não voltar a acordar.
Desde logo, obstinou-se nesta ânsia de morte, mal se apagou a
luz nos olhos dos seus pais, misteriosamente tolhidos no sono, pelo estrondo
medonho da aparatosa queda de parte do telhado daquele infinito mausoléu onde
viviam. A derrocada, fez cair também Justino numa indigência de sobrevivente
forçado, ansioso por lhes fazer companhia. E a explosão de dor que lhe rebentou
o coração, pouco tempo depois dessa catástrofe, em nada o ajudou a contrariar
esse preceito.
Era todo ele uma criatura sem proveito de serventia: nunca
apanhava nada do chão, nunca apagava luzes, arrastava uma cadeira ao seu lugar
de origem, nem fechava uma porta. Dava estranhos nomes às coisas banais e só
queria morrer depressa. Comia, quando e porque lhe apetecia, e por vezes nem
lhe apetecia ter apetite, e, nos momentos infinitos de solidão que a morte dos
pais lhe trouxera, o fulcro de glória da sua existência, resumiu-se aquela
estúpida colecção de botões de punho, de derivadas origens, cores e formatos,
pela qual nutria uma intolerância de amor sem explicação.
(continua)
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