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Há uma presença forte em alguém que se mantém calado: são as rugas do rosto e os cantos da boca que falam sem ser por palavras. Tivemos ali uma conversa inteira em dez segundos de silêncio.
Fixei-o com alguma rigidez ao atravessar o
umbral, fazendo contorcionismos impossíveis para que nem sequer o ar que nos
rodeava se tocasse. Reparei que tinha a pele inchada nuns pontos estratégicos
do rosto. Mapas de rugas em redor das pálpebras e da boca, finas gretas de
morte anunciada, entre lençóis possivelmente, o que me desagradou pela
facilidade, mas a morte ainda assim estava à vista. O primeiro sol engana-nos tão bem como o último dia de frio, daí saiu-me o sorriso que larguei sobre o seu corpo ao
cruzarmo-nos. – Ficas aí morto para mim,
como o velho sacana que és. Um sacana frio. “Morra o Dantas, morra! Pim.”
O resto da turba observava-me com desprezo e
desilusão, como se eu fosse uma carraça intumescida pelo sangue virgem dos
velhos e dos bichos, que vem a dar no mesmo.
Passei ileso pelos brutos, olhar cego à falsa
mansidão que malhava para a frente e para trás, acossando um pelotão em fuga da
máquina inimiga. Não me importei. Segui em frente, a buscar da vida o que me
roubaram, e tudo mais o que me aprouver tirar.
O telheiro adjacente, aquele pátio e o prédio
inteiro eram agora um só território libertado, – libertei-o eu – daquela cultura de labirinto que habita nas cabeças
dos velhos. O mal-estar daquele pequeno drama selvagem ainda estava no ar desta
manhã, houve até quem dissesse depois que, até ao último dia em que o viram,
nunca antes tinham visto alguém tão parecido com o meu pai, sem ser ele, como
naquele instante.
Acabei por entregar a cabeça novamente aos
génios, ao entrar para o pátio e enquanto fazia a longa caminhada do martírio
por baixo daqueles olhos todos que já me transformavam em cinza, deixei-me
nivelar com a monumental solidão que pesa sobre os ombros dos Buendía, como aliás assim pesa sobre os
ombros de todos, na nossa condição de pessoas. O Gabriel - a voz mais poderosa da literatura das Caraíbas - conseguiu em “Cem Anos de Solidão”
uma coisa de elucidar a eternidade, como que uma majestade de sons perfeitos
escritos em palavras.
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