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As crónicas do Senhor Barbosa


A solidão apoia-se numa só perna, e o senhor Barbosa, que não dorme há dois dias, perfurou com os seus dedinhos as parecenças e projecções de outros lugares que muito mal o receberam. Mal sai do pé da janela, a sua natureza é estática, mas só no corpo, (a cabeça não pára de crescer em ideias) e quando o faz, aprecia apenas ser bem recebido. Ali só sentiu medo e desprezo e confusão. O senhor Barbosa rodopia sobre si mesmo com a confusão que lhe atiram para cima. Parece uma mosca a quem arrancaram as asas por ciúme ou por rancor. Rodopia e rodopia... Acaba por rodopiar demasiado, ficar tonto e cair desfalecido. Pobrezinho! Sabe lá o que são as coisas normais. Se soubesse, não estaria sozinho. No fim vomita de náusea e julga-se doente no seu perfil psicológico, sente espasmos ao nível da existência, do desfasamento unilateral nas costelas, e pôs-se a escrever cartas aos filhos, incapaz de alinhar logicamente os filamentos para o seu futuro. 
Nenhum vizinho alguma vez percebeu porque andava ali o senhor Barbosa, em roupão de banho, às voltas em frente à janela que dava para a praça. Rodopiava e rodopiava, feito um pião. Parecia movido por aquelas pilhas eternas, mas nem tinha dinheiro para as comprar. O senhor Barbosa de um lugar por onde nunca se imaginaria aparecer, emergiu uma circunstância que o abocanhou, cuspindo-lhe romance. Ficou estranho porque jamais lhe explicaram que o romance poderia ser assim. E assim por diante. Agora talvez os vizinhos já saberão um pouco mais sobre a sua inconstância.
Em tempos, e para os mais abismados, foi fazendo um desenho de si, até perceber que aquele lugar era só um abismo. Cada braço inerte escondia-se do outro atrás do corpo baço. Perguntou a quem passava embaixo: "Como se tem pé neste sítio?" Mas os transeuntes, alheios ao desequilíbrio que provoca tal arremesso julgaram-no enlouquecido e continuaram adiante sem lhe dar resposta. 
O senhor Barbosa chorou muito entre os copos, e chorou mais entre os cigarros seguidos. Até quis chorar entre vícios mais pertinentes na força do esquecimento, mas, por mais que pensasse, não conseguiu encontrar quem lhe vendesse esse oblívio. Um dia leu que os vícios nos davam humanidade e acreditou tanto que não resistiu a afogar-se neles.
Um salto a pé-coxinho pressupõe uma esperança de elevação, ao início, e um desânimo cansado, na queda. Ou será antes uma vontade de se lançar no vazio logo agrilhoada por uma réstia de teimosia? O espelho baixa-lhe os olhos, pois traz a ilusão de partilha na franqueza de um retrato cru. A outra perna diferente da da solidão tem cãibras, e o senhor Barbosa está tão cansado que hoje começou a beber às 09h00.

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