Avançar para o conteúdo principal

Os meus amigos, os livros.



Chegada a altura da primeira escola, que depois seguiu por ali adiante, acabei possuído de um fervor que me sugava para dentro dos livros, sofrendo de um evidente estigma de bicho esquisito, por andar a arrastar cadernos e livros feito um burro de letras. Ainda hoje sofro desse mesmo mal-estar, tomado como consequência do “excesso” de leituras.
O meu mundo, ou a minha casa alargada, era um pouco maior que a dos amigos que me acompanhavam. Não sei se seria por o meu pai ser alfaiate, e costurar as estantes com novos livros do Círculo todos os dois meses, ou porque terei sempre sido muito solitário pelas brechas, metido ao acaso entre rodos de gente, pondo mais empenho nas leituras que nas brincadeiras. - Digo isto sem qualquer arrogância classista, que não possuo alguma. - A verdade é que, na rua dos meus pais, um quilómetro de paralelos empinados entre uma igreja matriz e uma fábrica de chocolates, ainda hoje se contam pelos dedos de uma mão, aqueles enferrujados pela fome dos livros. Nessa rua, quando eu comecei a aprender Kant e Pessoa na escola pública, muitos da minha idade, já traziam dinheiro para a economia doméstica. Alguns eram e continuam a ser boa gente, outros nem por isso. 
Lembro-me de famílias cujo batente da porta da rua era um montículo de merda seca no chão de saibro e de outrostão afáveis, que me deixavam conversar em pé de igualdade, sobre coisas que não lhe diziam interesse mas que se empenhavam em guardar segredo, como se fosse para o fazer, enquanto lhes enchia as orelhas com as minhas histórias. Guardo essa condição de reminiscência ao passado, como um dos poucos resquícios ocultos da minha infância que ainda me calhou viver.
Não tendo nascido no desafogo das “boas famílias”, devo aos meus pais o estímulo para avançar escola adentro, a aprender coisas inúteis como a necessidade de pensar livre e informadamente. 
Os livros acabaram com muita coisa má que a adolescência me atirou em cima, e ao que cheguei depois, na possibilidade de ser menos um estorvo na salmodia onde tudo está previsto e é do tamanho dos que decidam e dos que dominam, também por isso lhes tenho a agradecer. 
Possuindo uma 4ª classe de outros tempos remotos e um percurso profissional marcado pelas circunstâncias (pai alfaiate, mãe serventuária de limpeza), não se deixaram tolher por essa mentira do destino, que abrevia os espetos nas casas dos ferreiros, e chegado até aqui a escrever livros e outros textos, seria preciso ser muito ingrato ou imbecil para menosprezar a vantagem extraordinária de ter nascido de quem nasci.
A certeza do futuro não contribui para redenções mas, aos quarenta e cinco anos, nem por isso me ponho a gostar mais de todos os vivos em geral. Só de alguns. 
A lucidez queima a cada palavra porque escapa à obscenidade dos clichés, à acusação de iniquidade dos que me hão-de sobreviver, e estou bem convencido de integrar essa facção de olvidados.
Porque histórias destas não caem na melopeia do ajuste de contas com a vida ou a morte, ganham coragem por serem contadas, só com o peso todo que o sentido das palavras lhes concede.
A isto também agradeço aos meus pais, que me deixaram à solta com os livros, em vez de me pedirem para ser alguém.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci

António Ramos Rosa, in "O Grito Claro" (1958)

A ilusão de morrer.

Aqui estou no pouco esplendor que expresso. A tornar-me mais e mais fraco à medida que envelheço e perco a parca noção de humanidade que um dia posso ter tido. Só antecipo resultados finais de má sorte. Dor, doenças malignas de inescrutáveis resultados, possibilidades de incontáveis suicídios sem paixão, paragens cardíacas no galgar das escadarias de S. Francisco. Atropelamentos fatais nas intersecções de estradas mal frequentadas. Facadas insuspeitas pelas noites simples de uma pacata Vila do Conde. Ontem quis ir à médica de família, talvez me pudesse passar algum veredicto. Não fui capaz. Não admito os médicos e as suas tretas 'new age'. Há menos de meio-século atrás, esta mesma inteira profissão fumava nos consultórios e pouco ou nada dizia sobre pulmões moribundos. A casa na praia valia mais que o prognóstico verdadeiro impedido. Aqui estou, contudo. Ainda aqui estou. Trapos e lixo vivem melhor as suas existências que eu. Escrevo isto, bebo, escrevo, mais três cigarros. Que