Avançar para o conteúdo principal

Coisas insensatas das Ausências


(...)

Esfarelou-se como um lenço de papel perante o espirro furioso de um gordo e disse-me: “Há muitos fenómenos de visões. Nós, pastores, conhecemos sempre alguém que nos vem dizer que tem visões. Estes fenómenos são naturais. Não que esteja a aguardar que a Nossa Senhora venha do céu por aqui abaixo. - Riu-se falsamente. - Se o fizesse, certamente que faria logo paragem no oitavo, beberia um copo, conversaria com a passarada, apanharia um pouco daquele arzinho cristalino, e descansaria os pés, – ou as asas, não sei – na balaustrada aquecida. Um esquema de engonha, demorando o seu santo tempo, a ver se valeria a pena o esforço final da descida. Não, não. Esta minha situação, afinal, não passa de uma realidade profundamente evangélica. E o que acontece quando deixamos transparecer os nossos defeitos? Somos linchados, pois claro. Taxados de loucos, sem juízo, caídos longe da realidade.”
E eu acreditei em tudo, como se fosse mesmo comigo.

Foi no caminho destes andares que surgiu o boato de que um velho ferrenho jurou ter visto na janela do 1C, o rosto do Cristo iluminado — fenómeno que, para os presentes, só poderia ser interpretado como uma mensagem de justiça do que intentavam – um milagre, vá. - Um outro fiel, que também participava da investida, tentou explicar que tal milagre poderia ser apenas o reflexo da luz, mas foi calado pela multidão, que quase o espancou até a morte por heresia à causa. Recordo-lhe os olhos claros bisonhos, a boca dura, o ar ensimesmado, enquanto jazia para ali, numa poça dos seus próprios dentes. Poder-se-ia arrumar este episódio em um rodapé desta história, sem grande esforço de minudência. Sabe-se que o mal é sempre mais tenaz do que o bem, e em tempos de paz, isto provoca muita cautela nos justos. Porém, era ver aquela gente toda ali, a rejubilar-se com a alegre desordem do seu mundo. E o Garrincha no chão, a cuspir azares pela boca. (...)

Excerto de "A Ausência dos Pássaros" ...quase, quase a acabar.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

Acerca de Anderson's...

Hollywood é um gigantesco cadinho demente de fumos e fogos fátuos. Ali se fundem todos os sonhos e pesadelos possíveis de se imaginar.  Senão, atentem, como mero exercício, neste trio de realizadores, que, por falta de melhor expressão que defina o interesse ou a natureza relevante deste post, decidi chamar-lhes apenas de os " Anderson's ". Cada um mais díspar que o outro, e contudo, todos " Anderson's ", e abundantemente prolíficos e criativos dentro dos seus géneros. Acho fascinante, daí querer escrever sobre eles e, no mais comum torpe da embriaguez, tentar encontrar alguma similitude entre eles, além do apelido; " Anderson ". Começarei por ordem prima de grandeza, na minha opinião, e é esta que para aqui interessa, não fosse este um blogue intrinsecamente pessoal onde explano tudo e mais qualquer coisa que me apeteça. Sendo assim, a ordem será do melhor para o pior destes " Anderson's ".  O melhor : Wes Anderson .  O do meio : Pau...

O discurso do Corvo.

Eis-me aqui, ainda integralmente vivo e teu, voo ao acaso, sem saber por quem voar, por sobre rostos de carne, palha e infinito. Trago as mãos feitas num espesso breu, toldadas pela sede de te possuir e de te dar, o ténue silêncio, que é tudo aquilo qu'eu permito. As palavras, quando são poucas, sabem melhor, dizem tudo melhor, se forem poupadas. Abre os braços então, e recebe-as em teu seio, a secura desta terra já consome o sangue do meu terror. Já falei, e agora vou voar num céu de pequenos nadas, disperso no bando obscuro, mesmo lá no meio. De modo que, apesar da lucidez dos meus instantes, continuo sempre algures, no longo espaço que nos envolve. Nada temas destas mãos de cinza que já não tem dedos por onde arder, Eis-me para sempre, nos interstícios perdidos e distantes, desta paixão que é dada, e que não se devolve, e que é minha e tua, porque assim tinha de ser! Casimiro Teixeira 2012