Avançar para o conteúdo principal

A Noite em que Gershwin me deu um filho - Parte 4


...continuação

- Já que arruinaste a lasanha, queres o quê, que te faça uma omelete? - Questionou-me cheia de acidez.
Deveria ter desconfiado que aquela pergunta arrastava consigo um derrame, só pelo exagero da sua reacção. Todavia, a perspectiva de voltar a ouvir “Porgy and Bess” trouxe-me a humanidade de volta, atropelando-me por momentos o bom senso. Ela põs-se como que possuída, atada a uma birra pueril, e passou-me tudo a eito na peneira do torpor.
É que, qualquer ovo e seus derivados eram matéria de um assunto perturbador para Cecília. Isso nasceu numa noite em que encontramos uma caixa deles, na falta de dois para uma dúzia completa, num contentor muito asseado na rua da Igreja. Fizemos uma fogueira por trás da câmara municipal, num beco obscuro, e cozemo-los como se fossem caras brancas, embalsamadas pelo destino.
- Não cometas mais erros meu amor, precisamos de reabastecimento proteico a sério. A paixão só não nos chega. Quem alardeou essa putice de um amor e uma cabana, nunca deve ter vivido na rua por mais de três dias seguidos.
O meu grande azar, foi que os ovos deviam de estar podres de várias semanas. Achavam-se malcheirosos e virulentos e para Cecília, purgada já por todos os orifícios do seu pequeno corpo de mulher, foi a última vez que quis ouvir falar da sorte da concepção imaculada.
- Aqui tens a tua resposta: se Deus me quisesse buchuda ou prenha tinha-me dado bons ovos para isso. - Disse-me então, em seu jeito tão próprio.
- Respeita as minhas ideias e, mesmo que não concordes com elas, não as ridicularizes, - respondi-lhe - ajudo-te quando precisas, nem que seja só com uma palavra de alento. És incapaz de fazer o mesmo por mim.
- Agora que mencionas, só te digo que, fazer o contrário disso seria um pouco como querer apanhar morangos e, ao invés de começar a escavar, encostar uma escada à rama do grelo, não achas meu diabinho?
- Como?
Não houve mais qualquer réplica. Foi um revés ao plano que se prolongou por meses a fio. Um apocalipse nascido de pequenos episódios, um pouco como aquele comentário inocente acerca da omelete. Mais tarde, vim a descobrir que o grande problema daquela noite, não fora o raio do Gershwin, mas o mau hálito.
Irascível, purguei injúrias aos pontos cardeais todos. Tinha ali aquela mulher que poderia ser o melhor berçário de todos, e não lhe arrancava ponta de fertilidade por nada. Cecília contorcia-se, gemia inteira por trás da cortina. Fazia uma corrente de ar terrível ali debaixo, mas ela desmontava sempre a tempo da vazadura. O coberto estava despido de intermitências, e só se ouviam os risos do outro lado. Não suportaria tudo aquilo por muito mais tempo. É que quando um homem encava uma obsessão, deixa de haver tempo para galhofas. A idade torna-se assertiva, exactamente assertiva. Húmida e sensual só a principio, a seguir torna-se barulhenta, impiedosa, mal educada quase. Só queria um filho, porra!
Na outra noite enquanto passeava os dogues iluministas do padre, Voltaire e Montesquieu, pelas redondezas do rio, de acordo com o contrato verbal que assumira, lembrei-me do Gershwin outra vez. Pareceu-me tão simples a composição do amor perfeito que nem apanhei de passagem os poios de merda dos bichos. Fiquei ali parado a observá-los como se aqueles cagões bondosos me pudessem transportar até Paris, e aquele negrume que ali corria pejado de jacintos, fosse o Sena encantado. E depois ri-me muito também, ao imaginar Jacobino o padre, por este ser padre mas nomear cães como pensadores laicos que inspiram revoluções. Fez-me lembrar o Vilar Albuquerque, meu antigo patrão, que só comia ostras e tostas finas e bebia gin tónicos rodeado de cães sonolentos de porcelana, enrugadinho como um belo trapo de seda, sagaz e dono do seu destino. Mereceria ter uma revolução ali à porta, e um dia levei-lhe lá os cães ao pé, para lhe deixarem a merda republicana na soleira.
“Não te preocupes, Plínio, - diziam-me os colegas do coberto, - encarregar-nos-emos de fazer-te desaparecer num ápice, nem os teus ossos imaculados ficarão à mostra, nem os teus olhos, nem os teus tomates. E depois nasces outra vez de dentro da Cecília. Não te preocupes com nada, tudo se resolve.” - Mentiam tão bem todos eles, que poderiam ter sido meus colegas na RENOVAR Seguros. Tinha então de resolver o meu futuro antes de o viver. 
Ainda mal cantava o galo na manhã seguinte, já me encaminhava em passo ligeiro farejando a batina do prior. A poeira circulava pelo ar vinda de vários ângulos, corria as árvores, levantava-se sobre os carros. Encontrei-o a meio da preparação da missa matutina na igreja do Senhor dos Aflitos. Estava fechada ainda, dizia o horário na porta, mas tinha os meus recursos. Fiz questão de me benzer três vezes na sua presença, genuflectindo-me e tudo, como manda a boa tradição cristã. Ao padre, agradou-lhe a conversão espontânea de tal pecador, e a conversa entabulou-se logo ali.

... continua

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

Acerca de Anderson's...

Hollywood é um gigantesco cadinho demente de fumos e fogos fátuos. Ali se fundem todos os sonhos e pesadelos possíveis de se imaginar.  Senão, atentem, como mero exercício, neste trio de realizadores, que, por falta de melhor expressão que defina o interesse ou a natureza relevante deste post, decidi chamar-lhes apenas de os " Anderson's ". Cada um mais díspar que o outro, e contudo, todos " Anderson's ", e abundantemente prolíficos e criativos dentro dos seus géneros. Acho fascinante, daí querer escrever sobre eles e, no mais comum torpe da embriaguez, tentar encontrar alguma similitude entre eles, além do apelido; " Anderson ". Começarei por ordem prima de grandeza, na minha opinião, e é esta que para aqui interessa, não fosse este um blogue intrinsecamente pessoal onde explano tudo e mais qualquer coisa que me apeteça. Sendo assim, a ordem será do melhor para o pior destes " Anderson's ".  O melhor : Wes Anderson .  O do meio : Pau...

O discurso do Corvo.

Eis-me aqui, ainda integralmente vivo e teu, voo ao acaso, sem saber por quem voar, por sobre rostos de carne, palha e infinito. Trago as mãos feitas num espesso breu, toldadas pela sede de te possuir e de te dar, o ténue silêncio, que é tudo aquilo qu'eu permito. As palavras, quando são poucas, sabem melhor, dizem tudo melhor, se forem poupadas. Abre os braços então, e recebe-as em teu seio, a secura desta terra já consome o sangue do meu terror. Já falei, e agora vou voar num céu de pequenos nadas, disperso no bando obscuro, mesmo lá no meio. De modo que, apesar da lucidez dos meus instantes, continuo sempre algures, no longo espaço que nos envolve. Nada temas destas mãos de cinza que já não tem dedos por onde arder, Eis-me para sempre, nos interstícios perdidos e distantes, desta paixão que é dada, e que não se devolve, e que é minha e tua, porque assim tinha de ser! Casimiro Teixeira 2012