A
faculdade humana de cavar um nicho para si, de segregar uma carapaça, de
levantar à sua volta uma rígida barreira de defesa, uma armadura de medo, mesmo em circunstâncias não desesperadas, é um
preciosismo muito nosso, roubado aos bichos, dos tempos das adaptações milenares, em que uma parte
passiva nos fodia, e outra, mais activa, nos comia.
O
estipular metódico de pactos tácitos de não-agressão com a própria consciência muito evoluíram. Somos hoje bem capazes de atravessar a rua face à visão do que nos incomoda o nojo. Mendigos? Poetas? Sem-abrigo? Escritores não publicados? Refugiados? Bloguers? Pretos? Iconoclastas? Ciganos? Humoristas? Que horror! - Esta gente havia era de ser toda arremessada a um barraco e levar com gás em cima. Muito depressa. Já. Que me arrepiam todo.
Estes são os medos que conduzem à emergência de soluções ainda mais aterradoras.
Até conseguimos explodir, vez em quando, na protecção confortável da distância virtual. O que pouco evoluiu, foi a nossa capacidade de nos atirarmos de cabeça. De fazer o pino quando os outros caminham, de não ir a festivais de música, de espetar o dedo do meio quando todos concordam, de dizer: quero só foder-te, de comprar livros aos obscuros, de cagar para os 'amigos' falsos que só olham a meios, de morrer pela verdade da palavra, de cuspir nas obras de arte pretensiosas, de baixar as calças e mostrar o caralho aos que nos fodem diariamente a vida, de escrever textos que ninguém lê, de não procurar o abrigo das tribos, de chorar, de mostrar que choramos, de gritar contra os incêndios e contra as árvores caídas sem responsabilidades, de ir contra a maré dos 'opinion-makers', de expressar dor quando essa está presente à vista, de pormos as banhas de fora e tomarmos banho no mar gelado, de fodermos, sim, de fodermos só por foder. Porque não são precisas razões instrumentais ou racionais para se foder quando é necessário. É só um instinto, e esses caminham lado a lado connosco desde os tempos das fogueiras acesas nas cavernas incertas. Precisámos é de atirar toda a razão a esse mesmo fogo. De criarmos contravenções, naturezas à la minuta, gostos fora do azul espartilhado das redes, de nos munirmos de garra e andarmos contra. De caminharmos contra o que nos mata. Porque o que nos mata já está aqui, em ovulação, e isso é inadmissível à liberdade. Sermos intolerantes com os tolerantes institucionais, pois, de outro modo, jamais se dará um passo contra a intolerância radical. De querermos contar, de querermos fazer parte da evolução, de não mais permitir as decisões longe das vidas onde vivemos. De viver sobretudo, em vez de nos encolheremos em medo e só pensarmos em sobrevivência. Essa seria a grande liberdade evolutiva da pessoa, se ainda ao menos, as pessoas, não se cagassem todas pela perspectiva da expulsão sumária da tribo segura. É que lá fora, andam bichos medonhos!
Tudo isso ainda permanece aberto a novos estudos sociológicos. Continuamos a intuir desastres iminentes, e a escapar-lhes a tempo também, descaradamente amedrontados pelo desconhecido. O facto de ainda o fazermos, a meio do ano do senhor de dois mil e dezassete, põe sérias mossas na teoria da evolução do Darwin.
Entrar
nu no jogo da vida e sair incólume e ainda nu, se possível, pela intervenção cuidada de
misteriosos químicos que nos alvoroçam o perfeito sentido da razão, é coisa de singularidades absolutas, muito restrita aos mais bravos de todos os mais audazes. Daqueles a quem sobra um rasgo de herói no assomo. O resto, são biliões e biliões de meninos e meninas cagufas, que enchem de lágrimas os regos das ladainhas constantes.
Um
pressuposto de trabalho forçado, e de gastos de uma vida inteira, com vista a vencer a
aposta inglória da sobrevivência. Sobrevivência acima de tudo e de todos. É esta a
circunstância mais grave do medo. Passamos a ser intrusos num ambiente
desconhecido, entre outros companheiros nunca antes vistos, e que também nos
são hostis, também nos aterrorizam o bom discernimento. Ainda se ao menos o fossemos em silêncio, mal cuidariam as ciências humanísticas de nos estudarem, mas não. O medo é como uma chuva que deus-dará, que se agradece em tempo de seca continuada, até à altura em que quase nos afogamos nele. Tanto se nos enraizou esta mediocridade do medo nas estruturas do ADN que só fugimos ou atacamos, porque cremos serem só estas as únicas ferramentas no arsenal da humanidade.
Conseguir
resistir à tentação incerta da coragem e da audácia, e escapar às selecções
arbitrárias do destino, momentaneamente alheios às blasfémias e às violências,
ajuizando a cada passo o retorno absoluto, e fazendo força desmedida para
acreditar que este é possível.
Marchar
mil vezes para trás e para diante, numa fadiga muda, para sempre apagados na
alma que nos morre anónima. O medo tem estas mil faces, todas iguais no final. Pomo-nos a jeito de continuarmos a involução da humanidade. E mal representada, a humanidade continua a ser uma puta!
E depois, gritámos muito também. A vista do grupo é tão bonita que até nos embacia os juízos. E acreditámos que tudo correrá bem, enquanto nos mantivermos nesta caverna acolhedora, ainda que seja insensato contar com isso, e que os dinossauros historicamente inexactos, persistam em comer-nos amiúde. O medo tolhe-nos
completamente, vira-nos do avesso, consome-nos num nada. Ficámos perdidos, não
para sempre, mas para nós e para todos. Já nada nos pertence, e deixamos de
pertencer, até à nossa própria miséria.
Toda
a vida nos enfrentámos aos espelhos com o medo da morte. Mas, a morte entra de pantufas pela noite dentro e pouco se importa com o medo. Alguma glória teríamos, se fossemos menos pusilânimes, menos caguinchas. Viveríamos uma vida completa, e não um sucedâneo de vida. Mas
até os restos que deixamos intactos, nos são roubados pelo medo.
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