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Piquenas estórias de amore VIII


Já era quinta-feira e o mundo continuava fantástico.

Disse-me que sim: "É tudo simples, viver é simples. Que mais há para ser dito sobre o amor? que é bom, que existe? 
- E sobre as ausências e os grãos de desespero pelo mundo afora? Que crescem e crescem, sem parar. E sobre as cordilheiras de pura dor que atravessam o mundo? - Pergunto-lhe.
- Que são o que são, e que não há nada demais nisso. E sobre os abraços espontâneos de um filho, não queres falar? E sobre aquela borboleta que me entrou ontem pela janela. Sobre os dois euros que encontrei num casaco de Inverno e te convidei para vires tomar café hoje comigo. Sobre estas coisas, queres falar?
Acuso-o de optimista, e ele sorri com gratidão: "Sou. Coisas há que nos dão garantias de estabilidade aos dias. De contrário, chega Dezembro, e nada feito a que se chame vida.
Rio-me e penso que talvez aquilo seja uma estreiteza que lhe deu neste dia. Está bem que ele não queira viver para sempre, mas rio-me porque lhe apetece que os outros o façam. 
Foi sempre assim. Ele tem um Ford Escort atado nas portas com fio de norte, e eu.. eu lembro-me só de um trecho do único poema que decorei: "Alguma coisa me consome. Fumo demais. Bebo demais. Morro de menos." 
- Sim, eu sei o quanto gostas desse poema. Heiner Müller.
- Falei..falei em voz alta?
Perco-me por segundos analisando todos os meus dias e conclusões e quando volto à mesa, ali está ele a falar da poesia que lhe enche o fôlego de futuro. Fala com leveza, com uma alegria imensa. Cada palavra parece empurrar-lhe o corpo para fora do medo, e penso: "Se houver próxima vida, queria tanto ser assim".
Depois conversámos sobre questões de fundo. Que ele faltou a uma entrevista de emprego para estar aqui comigo. Como eu queria tanto ser bom em entrevistas de emprego. Que ele criou o seu próprio emprego enquanto se ocupava a pedir o café: "Vou ser editor de cartas de amor." Quanto eu desejaria poder criar seja o que for. Em nosso redor as pessoas queixavam-se da chuva, e ele ria-se: "Nem penso quando olho pela janela. Não digo nada."
E continuamos a falar sobre considerações várias. Umas relativas ao concreto e outras ao etéreo. Volto a mim a tempo de me rir da sua última piada e de nos despedirmos. Abraçou-me com tal ímpeto, que o meu coração não se conteve e me tingiu a camisa. Ele foi ao bolso do casaco e tirou uma esferográfica vermelha. Passou-ma para as mãos. Os meus lábios não se moviam, nem um som. Ele diz-me: "Escreve esta história, se te apetecer. Viver é simples. - Repetiu outra vez, mais devagar -  Simples."


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