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Piquenas estórias de amore VII



- Olha, o passarinho. ri-te, vá lá.
- Ri-te tu, antes. Diz qualquer coisa engraçada.
- Digo o quê?
- Sei lá, qualquer coisa.
- Está a gravar, senhor? Quando formos grandes, seremos artistas, sabe?
- Sim. Filmamos já os outros meninos. Ainda haveremos de ser artistas.
- Mas como, se não temos aquela geringonça?
- Olha, assim. 
- Com as mãos no ar?
- Sim. Depois vamos ali ao coreto e treinamos os teatros. 
- Posso cantar?
- Podes fazer aquela coisa de cantar. És tão tapada. 
- Tu fazes aquela em que tens os braços abertos e desces os degraus, a sorrir. 
- Faço pois, e tu cantas. Se fizermos muitos teatros e muitas canções, e se convidarmos toda a gente, depois podemos ir à mercearia da D.Laura comprar caprisonnes fresquinhos.
- E aquela coisa que tira retratos, quando compramos?
- Não sejas trenga. Fica séria, agora. Mas depois tens de cantar, sim? Vais ver, quando tiveres óculos escuros é que vai ser. 
- Tens cá umas manias. Isso não pode ser só teatro. 
- Chiu, cala-te agora. Fazes umas danças e cantas. Entro depois e deixo-me salvar pelo artistinha. Caio desmaiada nos seus braços, mas tudo a fingir, entendes? Está pouca gente no jardim.
- E quem vai ser o artista, falamos com o TóJó a ver se ele quer?
- Quando chegar Agosto vai ser melhor que isto. 
- Mais gente? Os meus tios chegam da França.
- Estás com ranho. Cala-te e olha para a frente. Amanhã fazemos outra vez aquilo de correr até à estação, combinado?
- Levar com o vento do comboio na cara, gosto tanto. E o TóJó, pode vir connosco?
- Não, o TóJó não pode vir. Só eu e tu. Temos moedas que cheguem. Podemos é ir de bicicleta até à praia, ver quem fuma mais cigarros. Vamos até ao fim do pontão e escondemo-nos atrás do rochedo azul.
- Que nojo. Não gosto quando o papá me dá beijinhos desses. O bafo dele cheira ao café do Ti Antunes. Pode ser que esteja bom tempo de tarde. Posso cantar na areia para os turistas, e tu pões uma toalha às costas e fazes de conta que és uma princesa em perigo.
- Tola! O vento atira-te areia para a garganta e não consegues cantar. E eu não posso fazer teatro com a toalha velha do meu irmão às costas. Tem dois buracos.
- O TóJó empresta-te a dele. A dele é bonita, tem uma menina bonita em biquini.
- Chiu, não digas trenguices. Já te disse que ele não vai connosco. Só vamos nós as duas para o cinema.
- Se calhar, antes disso, ainda vamos à nossa vida, estudar e assim. Mas depois, está bem. Podemos brincar aos filmes só as duas. Como hoje. 

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