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O Surto


Donato vinha apressado, trazia a maleta na mão direita e, assim que virou aquela esquina manhosa, perdeu logo a conta dos passos até reduzi-los num nada.
Encostou-se cambaleante à parede da padaria e por ali mesmo ia escorregando devagarinho até se ver sentado na calçada com a maleta defronte.
Cinco transeuntes fizeram-lhe cerco e as questões vinha todas seguidas e todas muito iguais: "O senhor está bem? Senhor Donato, sente-se mal? Sente-se bem Senhor Donato?" - Alenquer Donato, era uma figura que quando abria a boca pela cidade os outros fechavam as suas de imediato. Fazia muito por abri-la agora, movia os lábios com vontade, mas nada de respostas.
Um senhor alto e todo vestido de azul sugeriu que sofria muito, dos ataques que deitam as pessoas ao chão.
Donato reclinou-se, estava agora deitado ao comprido pelo passeio e um rapaz novo, esgalgado por ele todo, pediu aos outros que lhe dessem espaço à respiração. Abriram-lhe o casaco pelo trespasse, alargaram o colarinho e o nó da gravata. Quando lhe punham os sapatos fora dos pés, Donato purgou uma espuma pela boca, ao canto.
Mais pessoas chegaram, entretanto, entre moradores da rua e clientes da padaria eram já para cima de vinte, sem contar com os estranhos, só de passagem. O senhor de azul, insistia que Donato morria de ataques continuados, que aquilo era um surto que se via muito por aqui.
Um velha, já muito grisalha nas mãos, sentiu-lhe a testa a escorrer água e afirmou muito baixinho que aquele homem já morria sim, mas pelas febres malignas. A populaça alarmou-se e já o ia arrastando até um táxi. Donato, com a parte do corpo que inclui a cabeça, dentro do carro de praça, ficou detido pela metade quando o taxista pergunta: "E a corrida, quem ma paga?"
- O melhor é chamarmos o pronto-socorro. - Diz o ajudante de padeiro que ajudara a tira-lo do táxi.
Donato é novamente reconduzido ao passeio e ali aguardava, deitado. Metade da gente dispersou pelos seus afazeres e já não havia sinal dos seus sapatos ou da sua maleta de couro. Encostaram-no à parede do outro lado da rua, perto da montra da sapataria Gabarito.
Ao lado oposto, pela vitrine da padaria, alguns iam tomando meias-de-leite aos bochechos, apreciando o incidente pelo vidro. Donato continuava torto como o deixaram. Algum resistente, perguntou se não seria melhor que lhe examinassem os bolsos a saber quem era.
- É Alenquer Donato, o cigano. - Diz o homem alto. - Como é que não o reconheceste de imediato? - Continua este.
O primeiro homem, assistido por mais dois, revistava-lhe a carteira e os bolsos interiores do casaco justo até ao sinal de nascença. 
- É. Tinhas razão. É mesmo o Donato. - Concluiu.
Registou-se mais uma pequena debandada de transeuntes longe do corpo. No outro lado da rua, o padeiro gritava pelo seu ajudante, que era preciso fazer mais uma fornada para acompanhar tantas meias-de-leite. Várias pessoas chegaram a tropeçar em Donato ao se afastarem, algumas tinham pressa, somente.
Parou um carro na berma. Saiu um homem em mangas de camisa que logo se agachou ao seu lado. 
- Que se passa aqui, sentiu-se mal? - Pergunta ao homem alto todo vestido de azul. 
- Não há forma de se saber. - Diz este. - Aquele senhor ali ao fundo falou qualquer coisa sobre um surto de ataques.
- Ataques? Foram terroristas que o deixaram assim, neste estado?
Donato jazia escangalhado no passeio, sem casaco onde ter a carteira, estava sem calças para os trocos. Tinha o cabelo fora de prumo e a boca suja.
- Alguém ficou de chamar a ambulância. - Afirma o homem alto. - Mas acho que teve de ir fazer pão primeiro.
A gente toda dispersou. Donato ainda pulsava, mas tinha a respiração por um fio. O homem em mangas de camisa falava ao telemóvel ao seu lado, e o outro, que era muito alto, admirava-lhe a tecnologia de ponta.
Ficou a senhora muito grisalha, sentada no passeio ao lado da cabeça de Donato. Vez em quando descia-lhe a mão pela fronte e só quando a sentiu seca é que acreditou estar sentada ao lado de um defunto. 
- Ele morreu, ele morreu! - Grita a senhora.
E de novo, vieram rodear Donato, alguns que experimentavam sapatos e outros que ainda traziam bigodes de leite nas fuças. Levara quase duas horas para morrer e as pessoas entristeceram-se por não ter sido mais tempo. O homem desligou o telemóvel e cruzou as mãos de Donato sobre o peito nu. Fez recurso ao que lhe sobrou para lhe amparar a cabeça, uma rodilha de gravata: "Ninguém pode prever estes ataques - diz o homem muito alto todo vestido de azul - Isto espalha-se de repente e já está. - A espuma tinha desaparecido toda da boca de Alenquer Donato e os seus olhos fecharam-se antes, sem que ninguém precisasse agora de o fazer por ele. Ficaram todos debruçados sobre o corpo, por largos minutos, quase como em um retrato, até ter começado a chover.

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