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Hemingway, o gato e o caminho


O gato ao fundo do sofá e eu a ler. Hemingway está cansado e escreve sobre o cansaço. Entendo-o como se estivesse ao meu lado a falar-me. Parece que teve uma infância feliz. Tenho pena que a felicidade nem sempre nos acompanhe os anos. Envelhecemos e tanta coisa nos fica pelo caminho. A felicidade nunca haveria de ser uma dessas coisas. A felicidade ou a inocência ou os amigos verdadeiros. Ou as auroras. Tudo o resto, que for de poeiras e insónias não carece de envelhecer connosco. Agora, veio o meu filho cravar-me um cigarro e o gato alarmou-se ao tempo curto de um bocejo. O que me entusiasma é saber-me pertença e ainda ter caminhos possíveis, abertos, que me fazem muito sentido. Vou escrevendo estas coisas porque ainda procuro muito ou porque me irrita aguentar a ideia de que todos os dias tem de valer a pena. Alguns são tão pequenos que desaparecem antes de os vivermos, outros arrastam-se e outros ainda ficam para sempre. Envelheci e certas coisas enraizaram-se-me no hábito de matar saudades. Lá fora, o mundo deixou de saber sobre isto. Não se ouvem carros por ser Sábado e o gato voltou a dormir. Eu voltei à conversa com o Hemingway, e nada disto deixo pelo caminho.


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