Repesco aqui um texto que escrevi, que é o capítulo um de um conto: "O Fim da Inocência", que viria a ser, um de muitos, cada um escrito por mãos diferentes. Isto veio a ser um projecto idealizado por uma boa amiga, a grande Luisa, mulher de enorme tenacidade face às tremendas adversidades que a trancaram em uma cama. Encontrou na escrita a liberdade que o corpo já não lhe permitia, e não se quis ficar. Tratou de sair pelo ar e juntar os amigos para irem escrevendo com ela. Chegamos a ser mais de doze, escrevendo ao prazo, que nos ia pautando a Luisa. A coisa resultou bem, salvo um ou outro contra-tempo, cada um em seu estilo, adequava a história o melhor que conseguia ao capítulo anteriormente escrito por outrem e por aí adiante. Havia até uma cronologia, que não era inflexível nem nada. Não se podendo saltava-se aquele interveniente e continuava o seguinte, voltando o primeiro à lista logo que pudesse. A história tinha de prosseguir, estávamos determinados a isso. Mas, éramos pela Luisa, pelo prazer de escrever também, mas sobretudo pela Luisa. Incendiou-nos a todos com a sua perseverança e singeleza. Juntos, criamos este e mais um punhado de contos que, salvo erro, acabaram publicados em papel. Acabei por me desligar do projecto antes do último conto que foi escrito, culpa da minha cabeça inconstante, mas sinto saudades daquela boa pressão de ter um prazo para apresentar um texto. Não era nenhum crivo, que estava entre amigos, gosto disso apenas, da disciplina. A pressão é a inimiga mortal da procrastinação. Tanto tempo que perco sem ter prazo. Obrigado Luisa por este bocadinho.
É um bocadinho longo o capítulo, mas, sem pressas lê-se muito bem com uma chávena de chá na mão.
(...)
Os
tempos são duros no norte. Não somente neste país, mas no norte do mundo
inteiro, onde as estações não enganam, e a vida insiste em correr lategada por
uma dureza que não existe igual em mais nenhuma parte.
Pedra,
giesta e gelo, em longas extensões de um imenso carrossel de colinas e montanhas
enevoadas, que só se desfazem em planícies à vista do mar. Há um silêncio ali
instalado desde o nascimento dos tempos, interrompido apenas, e só muito
amiúde, pelo suspiro subterrâneo da própria terra, que de tempos a tempos, em
convulsões imperceptíveis, ainda vai moldando a própria figura. Aqui, toda a
natureza é áspera, o chão não se faz de tufos verdes de algodão, mas de lâminas
de rocha, e o céu fecha-se, abrupto, perante a presença de estranhos.
Alguém
se lembrou, porém, de tornar este mundo agreste, na casa de um bando sem fim de
ovelhas, que, em poucos anos se multiplicaram como nuvens, agarradas rentes à
terra.
Era
neste lugar que Laurinda deixava a vida correr devagar, sempre entretida com
jogos de fantasia.
No
meio do descampado erguia-se a sua casa, como um promontório triste de colmo,
madeira e rocha, rodeado por um relvado absurdo de líquenes húmidos, e
acerrimamente defendido contra os rigores do clima, pelo pai, que não pôde conformar-se
com o abandono deste lugar, mesmo depois de um mal ruim lhe ter levado a
mulher.
Por
entre os picos de cordilheiras nevadas, conduzia o seu rebanho de ovelhas, umas
mais suas do que outras, pois os bichos afeiçoaram-se às nervuras selvagens do
terreno, e à birra de serem também eles já quase selvagens, obrigavam Anísio
Benavente a confina-los em cercas de arbustos espinhosos e rosas silvestres.
Atormentado
pelo frio e sem sustento caseiro que o amparasse, por vezes por dias inteiros,
Anísio sobrevivia à desgraça, tão desamparado como as ovelhas a seu cargo, mas
sempre com o fito do destino incerto da sua filha na cabeça.
Era tanta
a carência de amor, depois dos idos da falecida, que, sem ter quem lhe
apaziguasse os desejos do corpo e as urgências da recordação, chegava a pontos extremos
de deitar olhares gulosos aos quadris lãzudos do rebanho.
Nestes
dias longos de solidão agastada, tudo lhe seria perdoado pelo altíssimo, não
fosse o caso de Anísio saber bem, que ela o observava, sempre, lá num ponto
perdido do céu, ou talvez alcantilada no cume mais alto de uma daquelas
montanhas, e logo se forçava a sossegar a fluidez do desejo, e resguardava as
recordações no baú da saudade, prestando mais conta aos ataques dos lobos, e às
consumições que a filha lhe trazia, do que às intermitências do desejo. E
assim, persignava-se solitário, benzendo-se à alma da falecida, e, de semblante
macambúzio, lá se reduzia à sorte que lhe coubera.
Laurinda,
pelo contrário, era feita da mesma cepa da mãe. A única mulher jovem em toda a
extensão daquela terra, e era uma fêmea próxima e precisa, com uma mistura
atrevida de sangue nas veias e uma óptima disposição para descobrir tudo em seu
redor.
A
sua alegria mais profunda, reinava radiante dentro de si, nos dias em que o pai
a levava ao vilarejo, encravado no sopé largo da montanha, por alturas das
feiras, quando todos os desamparados daqueles ermos distantes, ali se juntavam
para venderem, comprarem, cantarem e beberem até caírem para o lado.
Laurinda
era uma rapariga tola e inocente, sem jeito próprio de estar entre aquela gente
toda, ou qualquer gente que fosse. Preferia a companhia do vento e a amizade da
natureza, todavia, nunca se negava a acompanhar o pai, que, sisudo, tinha clara
noção do que a movia, e insistia para que ela ficasse. Ela, olhava-o com
aqueles olhos verdes imensos, quase de uma ternura impossível e dizia-lhe:
- O
Marco vai lá estar desta vez?
- Não,
desta vez não. – Respondia-lhe sempre o pai.
Mas
ela sabia que sim, e antes que ele persistisse na resposta já ela galgara o
degrau e abancara o traseiro irrequieto no lugar na carroça a seu lado.
Tinha
escolhido aquele moço, não porque fosse ele o único da sua idade que pelas
bandas dos montes deambulava também, mas, porque o seu olhar trazia-lhe um
ofício de consolo puro. Amava nele o cheiro do trabalho e do desejo, a voz
rouca, a barba de vários dias, o corpo vigoroso, onde gostaria de se perder
rapariga vulnerável, e ressurgir mulher feita, e, sem razão que compreendesse,
no fundo do seu coração ingénuo, combatia a própria índole selvagem só para o
ver.
Na
sua natureza bravia havia traços de ternura maternal também, e aquele rapaz que
lhe parecia mais um potro selvagem do que gente propriamente, inspirava-lhe
outros cuidados distintos dos do desejo, deixando-a à nora da falta de razão.
Marco
ganhava a vida caçando lebres, perdizes, e outras animálias que a procura lhe
demandasse, e que depois vendia ao custo de uma crosta de pão, às gentes do
povoado, ou a outras almas que se espalhavam dispersas por aqueles montes,
menos dotados do que ele, para as lidas da caça. Sentia-se feliz assim, não
tendo que prestar contas a ninguém, e levando também ele, uma vida solitária
entre os talvegues sinuosos, e as encostas escarpadas das montanhas. Laurinda
tinha razão. Ele era mais feito de carne e sangue de gato montês do que de
humano. Vivia debaixo de um tecto de zinco ondulado que produzia sons de flautas
e oboés quando o vento o atravessava, o que era quase sempre, tinha as carnes
firmes e a pele sem mácula, ria-se com gosto e ainda lhe sobrava desejo, muito
mais do que uma simples ovelha tresmalhada lhe poderia oferecer. Trazia o olho
posto em Laurinda, por quem se embeiçara também, e rodeava-a por vezes, como se
de um lobo esfaimado se tomasse, naqueles dias quando Anísio não estava por
perto. Mas, nunca se colocava a menos de duas léguas da sua presença.
Sentia-lhe o cheiro apenas, de uma distância excessiva que a timidez lhe
ditava. O aroma sólido das suas pernas de ginete por domar, e das suas mamas
invulneráveis ao uso. Sem quererem, apaixonaram-se ambos, um pelo outro, ainda
que nenhum dos dois, soubesse da paixão do outro.
Em
março, na quermesse do fim do inverno, faziam círculos concêntricos um de cada
lado da praça, até terminarem a dois passos um do outro. Havia um jogo que os
homens e as mulheres solteiras ou viúvas, faziam, onde elas vendavam-lhes os
olhos e fugiam pelos corredores das ruas, deixando que a perseguição cega
começasse. Aquele que conseguisse, assim mesmo, às escuras, pôr uma mão em
alguma, cacarejava qualquer coisa e ganhava o direito de dançar com ela a noite
inteira. Marco e Laurinda, eram os únicos que nunca haviam participado,
limitando-se a ficar impassíveis, em mútua observação dissimulada. Por vezes,
Anísio vinha apartar aquele abraço de paixão invisível que todos reconheciam,
menos os dois jovens, e reestabelecida a sua dignidade de pai ofendido,
afundava-se novamente nos festejos, deixando para trás o jogo do amor.
Finalmente,
entoando um som quase mudo de se escutar, Marco, decide abater a sua presa.
Estende-lhe a mão, e convida-a com um olhar ansioso:
- Queres
jogar também?
A
tão curta distância, e com os perigos do desejo à flor da pele, Laurinda
declinou o convite com um rápido aceno de cabeça. E Marco viu que ela era feita
do mesmo metal rijo que o constituía, e decidiu que depois de tanto tempo, não
valia a pena continuar a viver sem ela. Sentou-se num canto da praça, encostado
ao batente de um marco de pedra, observando-a com cuidado, e calculando as suas
possibilidades.
Laurinda
pareceu-lhe demasiado formosa e selvagem, como uma águia das montanhas. Sentiu
a acordar os seus instintos de caçador e a vaga dor do desamparo que lhe
atormentava os ossos, sobretudo quando ela partiu a correr, com um riso
malandro colado aos lábios.
Viu
os pés calçados com botas curtas, as meias grossas presas com elásticos abaixo
dos joelhos, os ossos grandes e os músculos tensos daquelas pernas nuas a
brilharem entre uma onda de saiotes e soube que tinha oportunidade de a
conquistar. Tomou posição, fincando os pés no chão e inclinando o corpo até
encontrar o próprio eixo da sua existência, preparou-se para a perseguição.
- Venham
todos, depressa.. – Bradava uma voz em desespero no meio da praça. – É o pobre Anísio, está ali caído todo
estrambelhado, como morto. – Continuava esta.
Marco
nem chegou a arrancar.
(...)
Casimiro Teixeira
"O Fim da Inocência" - Cap. 1
Comentários
Enviar um comentário
Este é o meu mundo, sinta-se desinibido para o comentar.