Apareceu-me na rua, anteontem, debaixo de um castanheiro, um senhor baixinho todo anacrónico, com um bigode orgulhoso que era o seu factor humano, e vinha este acompanhado por uma menina grande de pele morena e doce, com um sotaque às curvas como o Amazonas. Eu caminhava na direcção oposta e o homem pareceu reconhecer-me em inversão de marcha, detendo-me à sombra. - É mesmo você? - Perguntou-me. - Sim, sou mesmo eu. - Respondi-lhe cheio de certezas pessoais, mas algo fragilizado pela imponência ostensiva do seu bigode.
Havia também um coque perigoso - na rapariga - muito bem enrolado e muito bem preso que era mais bonito que a sua cabeça inteira, e tinha também um par de olhos grandes, e eu gosto de olhos redondos, como os vocábulos. Fiquei a ouvi-los, pois havia sombra presa por cima e boa vontade ao nível do chão. A primeira coisa que me disse - o homem - foi sobre a palavra nuvem, que era a sua favorita, dentre todas as nossas palavras, ditas ou escritas, e que me agradecia muito por a ter usado as vezes necessárias nas minhas histórias. Obrigado pela gentileza - disse-me o homem. - Vi logo quem era.
Ah, digo-vos, aquilo tudo pareceu-me um pouco como ir ao teatro. Eu ali por cima das lajes soltas com um chapéu de castanheiro e o homem e a menina - sobretudo o homem - a falarem-me, sem ponto fixo, como se tivessem tudo muito bem ensaiado. Soou-me demasiado bem feito para ser verdade. Contou-me ademais - ainda o homem - que quando lia a palavra, (nuvem) algo dentro dele se revolucionava, que se deitava de lado e batia com os dedinhos dos pés no silêncio da cama, e depois comia qualquer coisa para se recompôr. A rapariga, de olhos distintíssimos, apertou-lhe o braço com dois dedos afiados nas pontas nesse instante, e ele saltou aturdido para o lado de fora da sombra. Foi como se assistisse, vindo directamente da memória, ao corte de uma daquelas garrafas de plástico mole de vinagre, sabem? Aquelas que tinham um gargalo que se cortava à tesoura. Apertava-se a garrafa, e esta espichava, o que não era muito prático para os desatentos. Ficou para ali - o homem - ao sol, a deitar por fora umas coisas ditas em língua estrangeira e a olhar para o céu enquanto gesticulava imenso. A rapariga seguiu-o, empurrada pela vergonha e continuaram o caminho, exactamente como se se dirigissem à cena seguinte. Adorei o drama intenso deste bocadinho, ainda que tenha logo entendido que aquilo não era nada comigo.
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