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Remetido ao interesse de um Bimbo qualquer.


Era uma vez um pão francês que se chamava Bijou. Uma coisinha insossa, mas de semelhante têmpera enchida, como poucos assim se conheciam. Determinado e orgulhoso da crosta doirada que lhe fazia brilhar as bochechas altaneiras, polvilhadas a pó de farinha, este pequeno pão tudo teria a seu favor para ser dono e senhor do título de pão nobre, não fosse a sua má vontade e disposição de lamúrias a colocarem-no entre os mais vulgares dos vulgares pães de que há memória. 
É que Bijou vivia a sua existência fermentando dias de infinita tristeza. Poucos lhe barravam as costas com alegria, é bem certo, mas também ele somente contribuía para seu próprio descrédito. De todos se afastava um pouco mais, de dia para dia, dando-se ares de importância que nenhum lhe reconhecia. Nem o cacete, nem a rosca e muito menos os papos-secos se dignavam já a dar-lhe os bons dias. Os pães de água ainda se esvaíam em mesuras líquidas, mas ele nem lhes ligava. E os altivos pães tigre, eles mesmos, já de si também pomposos, apenas lhe devolviam um rosnar à sua passagem. Restavam-lhe os pães de forma, que, por serem moles e esponjosos de carácter, se davam com qualquer um. Com os pães de mistura, não havia misturas de todo, e obviamente que com os outros, os de íntegra mais escura, o desprezo era absoluto. Assim era. Bijou continuava remoído naquela tristeza que a principio ninguém entendia, e que agora, já nem dela faziam conta de ser coisa de interesse. Os que por vezes ainda lhe dirigiam palavra, faziam-no apenas para lhe lembrar, que não era mais que um miserável velhaco, por modo de ser francês, frisando-lhe bem que não dispunha da graça estaladiça de uma baguete, logo, que se deixasse desses modos afectados que a ninguém convencia com isso.
Porém, alguma coisa haveria de estar a afligir Bijou, não era possível aquele comportamento apenas e só, pela evidência da sua ascendência gaulesa. Ele sofria bem fundo, lá no interior do seu miolo, uma dor que a ninguém confessava, mas que, com a certeza da levedura que o compunha, lhe vinha esmigalhando o coração em fanicos.
Esta curiosa melancolia do pão Bijou, atingiria os seus limites suportáveis na noite do derradeiro dia de um certo mês de Outubro. Noite aziaga, assim constava, de mau fado e de bruxarias inconfessáveis assim rezavam as lendas. Nessa noite todavia, Bijou estirou os braços e abriu os olhos pardos à passagem de tão gulosa beleza que desabrochava leitosa em cada passada na sua frente.
Todo o seu mirrado corpanzil se arrebitou na sua presença. Dona Limiana Amanteigada assim o exigia, pois naquelas redondezas não existia criatura mais bela e reluzente. Era em si mesma, um belo espectáculo de se mirar, digno até de fazerem-se entoar canções de amor à sua passagem.
Folgazões, todos os outros pães se abriam na sua direcção, e a natureza em redor parecia fechar-se para que não ofuscasse tamanha beleza.
Bijou, claro, logo se amanhou na sua cama de vergonha. Longe de acreditar que tal encanto de sabor pudesse dignar-se a reconhecer a sua presença, mas enganara-se de novo. 
Limiana vergou-se a ele, ao tomar contacto com a sua existência ali. Ninguém lhe apresentou provas de que assim fosse, mas acontecera e acontecia ainda. Ele mal podia acreditar que tão Amanteigada e sedutora beleza pudesse quiçá pressentir a sua pose de pãozinho sensaborão, mas apesar de provas em contrário, que outra coisa poderia ser? Bastava olhar nos olhos daquele finura tão esbeltamente fatiada e não lhe restariam dúvidas.
Num instante de um crescer de massa, Bijou voltou a encontrar a alegria de estar feito em pão, a joie de vivre, se considerarmos as suas origens, e já só sonhava com a união perfeita que os dois poderiam constituir.
- Boa noite senhor Bijou. – Sussurrava-lhe sua voz fina e amanteigada.
- Boa noite senhora Limiana. – Conjugava ele as palavras num sopro corado de vergonha.
Logo ali o pão Bijou se vangloriou interiormente perante todos em redor. Só porque ela lhe falara, flexível, de corpo estendido e gracioso. Só porque ela lhe falou já se sentia um pão-de-ló. Só por isso já a imaginava enroscando-se em si, nas tardes solarengas da primavera que entrava. 
E durante os momentos seguintes, Bijou foi vítima predilecta das pilhérias (de mau gosto) dos restantes pães invejosos. Devo dizer-vos, para tomar certa a exactidão da verdade, que o pobre pão não tomava conhecimento absoluto do mal que dele falavam os outros. Se sabia, não se importava, e agora, perante o olhar sedutor da Limiana, menos ainda o considerava, se tanto. Mas é possível que nem soubesse que era tão mal visto pelos restantes. Assim crescia a felicidade dentro dele quando a lua cheia entrou galhofeira pelo céu dentro. O pão Bijou acordava daquela letargia de tristeza num espalhafato de cores, aromas, de melodias. Cores alegres, aromas de entontecer, sonoras melodias. Podia jurar que provinham todas daquela estampa de leite fermentado que ali se perfilava num sorriso de deslumbre.
- Que coisa de beleza estonteante! – Exclama Bijou.
De novo todos os olhares a seguiram sem descanso.
- Há muito que desejo o seu abraço quente. – Retorque ela num avanço provocante.
Assim ficou resolvida a tremura nostálgica de Bijou. Nunca fora falta de tempo de forno, mas empenho nas mãos que o formaram. Era o amor que lhe faltava, pobrezinho, amor e nada mais.
E por aquela expressão de paixão que ali nasceu, para sempre, todos ficaram de boca aberta (muitos até, aguados).

Miro Teixeira
2013




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