A memória é quase sempre o sangue a correr-nos em nome próprio. Se algum dia se escreverem biografias de nós todos, dir-nos-ão: "És aquilo que foste." - És memória portanto. - Daí que se escrevam tantos Romances de nós, escassas biografias.
O Romance escreve-se assim: "És tudo aquilo que queiras, desde que o imagines com ou sem memória." - Sem memória até sabe melhor. - Porém, dizem da memória que é guardiã ambivalente. Criatura bicéfala que vê o passado de um lado, o futuro, do outro.
São só esquemas dentro de engrenagens dentro de tramas dentro de nada. Escrever Romances faz doer tanto a memória, naquele ponto martirizante de se andar a assinalar etapas como se estas fossem parte de algum roteiro fascinante. E se a memória for um bairro-da-lata, povoada de cães famélicos, ruínas e pessoas de virtude duvidosa? - É natural que assim não se escrevam tantas biografias. Os leitores iriam encontrar páginas intermitentes, lacunas, onde a verdade mal poderia ser recordada, por ser tão infinitamente triste, um gorgolejo aqui, uma escarradela ali, e o resto só Sol e pôneis e cabanas brilhantes cheias de gente, a amar-se como chinchilas. Seria sangue nosso à mesma, mas quem quererá vê-lo a fluir entre os ramais de um esgoto? Tão longe da luz que lhes apetece recordar, só porque nem lhes pertence.
A memória é uma roubalheira, e nós, os ladrões.
Contra a tentação de recordar qualquer coisa particular aqui, só porque ainda não sou assim tão transparente e luminoso, acabo já, evitando dar o prémio à má-língua.
Imagino que assim parece melhor.
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