O BANQUETE DO JARDINEIRO
Em Junho de oitenta e cinco comecei a
trabalhar no "resgate" do jardim da Ermelinda Sameiro e Sá. A sua
casa era grande, verde e antiga. Na frente havia um pátio quadrado, quase nu, nas
traseiras, aquele jardim de tesouros onde noite e dia corria um rio pelo meio.
Foi sobretudo um processo de o habitar... habitar e perceber, mais pressentir
talvez, o sentido orgânico de tão grande espaço, de um verde inteiriço cercado
por uma orquestra de pequenas cores, de notas altas, aqui e ali.
Mal abri o portão de ferro, baixei-me e
levei um torrão de terra à boca, para descobrir-lhe a razão da mortandade.
Nessa altura ainda pressentia as coisas pelos sentidos todos, como quem joga
xadrez sozinho depois do jantar, só pelo gosto suave de cometer pequenas
tolices e não as achar grande coisa.
Agora, já não o faço. Já não consigo, entreguei-me à bebida como a um emplastro terapêutico que não actua jamais profundamente.
Vai fazendo o mesmo que uma Aspirina faz a um Cancro.
Ela tirou-me isso, e entregou-me àquilo, e depois ainda teve o desplante de me dizer: “Ó homem pára de chinfrinar. Que
coisa. Tens lá necessidade de estar sempre a gemer? Pareces um disco riscado.” - E eu ri-me, como um perdido. Agora não, já
não me rio muito. Tento trazer o riso junto com o total entorpecimento, mas não está a fazer o efeito que julguei vir a fazer.
Entre a tristeza dos botões de rosa
diminuídos pelo abandono, dos canteiros de buxos, húmidos e sombrios, das
japoneiras a competirem em cor com as roseiras, da eloquência dos gerânios e do vasto caminho de fetos
ressequidos, havia ali um coração pousado na superfície de tantas coisas descoloridas
pela sua morte prematura, que redimia a coisificação daquele mundo (quase)
perdido.
De repente, o pavor por todas as minhas
veias, um calafrio incerto que me desconcertou todo. Como se cá dentro se abrisse
uma artéria de medo, por onde escorressem todas as correntes de ar malditas do mundo.
Nunca fui homem de grandes premonições. Se houvesse sido, em pequeno, nunca me
teria deitado com a minha avó, para acordar de manhã ao lado de uma defunta. Suponho que teremos todos de experimentar alguns caminhos mais desavindos, por muito estranhos que nos surjam, para ganhar experiência, e ter algo para contar a alguém no dia final. - A monotonia é a pior vida de todas.
Do jardim da Ermelinda trouxe a haste e
a raiz de uma planta trepadeira que tem umas flores pequenas, vermelhas e
amarelas, que parecem miniaturas de candeeiros chineses. Tão bonitas que o mais
reles poeta lograria evocá-las como prova definitiva da existência de Deus. Em
Maio caíram-lhe uns frutos verdes como bolotas que nem aos pássaros
interessaram, nem aos pássaros nem a ninguém, eram mais veneno que bolota. Trouxe-a
comigo na mesma e plantei-a no meu próprio jardim, entre as magnólias e os meus
pensamentos mais difusos. O resultado não foi perfeito. Ficou ali qualquer coisa
pendurada, quando já exausto, me fui sentar no cadeirão da sala, ao lado do
telefone. Um momento antes deste tocar, mudando-me a vida para sempre.
Aquela voz surda do outro lado vinha de
um lugar onde só as aparências das coisas existem, não as coisas em si. Mas a
minha imaginação, recusava-se a acompanhá-las. – Olá meu amor, ainda demoras muito? Olá meu amor. Olá...meu...AMOR? -
Está lá.. quem fala? – Caiu a chamada. Fiz um esforço sincero por vê-lo real,
acometido de espasmos e dores abdominais. Caminhava amparado no ombro da minha
jovem mulher enquanto se lamentava do infortúnio das tripas, evidenciando as
mãos possantes nas suas costas, tocando-lhe no pescoço curvilíneo, num laivo de
um seio semi-exposto, no resto da minha vida.
Levei uma pancada muito forte na
cabeça, morri ali e pensei logo em Ulisses: “Telémaco, fora de si, dirige-se ao
acampamento dos pretendentes e apunhala Anfínomo. Liodes, amante de Leócrito e
primo do morto exige de Penélope uma reparação: Um duelo até à morte”
- Não sei porque é
que os homens que andam atrás de mim não me interessam e só aqueles que não me
ligam nenhuma, me atraem. Como o João Paulo por exemplo, que personagem!
- E eu, não tenho
sido bom para ti?
- O teu maior defeito
é mesmo esse. A mim atraem-me os maus,
os que me fazem sofrer, devo ser masoquista, quem sabe.
Liodes estava errado. Penélope era uma
puta fingida e mereceria ter morrido na ponta da sua espada. São tantos os mil e um imprevistos a ser levados em conta,
que para não se afundar, para não ir a pique antes de chegar ao porto, Ulisses deveria
de ter sido um grande calculista para lograr algum êxito que lhe reparasse a
honra. Ulisses deveria ter-se deixado de se fazer de parvo, deixando de lado a
pose de herói. A situação assim o exigia.
A haste secou depois também, pouco
houve naquela casa que não tivesse secado depois disso, as folhas e as flores
sucumbiram à memória do seu mundo anterior, em ruínas, e não resistiram. Eu
sequei todos os meus sorrisos, todas as gargalhadas e prazeres. Deixei que a
morte reclamasse uma porção do meu jardim com a mesma honestidade com que nesse
dia reclamou uma porção da minha vida.
Guardei um botão resistente, luminoso,
que optou por existir. Levei-o de volta para o seu local de origem, porque
sabia que em casa é onde sempre nos devemos sentir mais seguros, mais vivos.
Mal o voltei a plantar, senti imediatamente um cheiro premonitório de fim, que
me aguou de fel a boca.
Mas, onde começa o paladar e termina o
olfacto? – Sei tanto sobre isso, e tu, sensaborona que és, nem imaginas, tenho
a certeza. - A tentação da carne não nasce nos olhos, desengana-te. Nem
tampouco no sabor, que só chega mais tarde deixando somente um rescaldo de fumo
na lembrança, começa no aroma. No cheiro sim. Que é preciso, rápido, poderoso e
grava-se na memória com uma persistência tenaz. – Obrigado por me tirares isso
também! Obrigado por ajustares o arremesso da tua fúria ao ponto sensorial que
mais feliz me fazia. Por me roubares da vida os seus perfumes. Graças a ti
deixei de conhecer o cheiro da vida. Obrigado por essa oferta de violência.
Obrigado querida, obrigado.
A comida, tal como o ódio, entra
primeiro pelo nariz. De início a boca só atrapalha, mas estou certo que serás
capaz de meter qualquer coisa nessa boca imunda, desde que a princípio isso te
presenteie os olhos. Perdes-te pelos olhos, pois esse teu nariz é uma nulidade
de sentido humano. É por isso que nunca soubeste nada sobre o doce perfume do meu
amor.
Dias antes,
trouxera-te um bouquet de camélias e beijava-te sofregamente, num resto dessa
coisa chamada 'impulso do sangue'. Pois esse impulso às vezes cruel, não permite que nenhuma dor insista por muito
tempo na circulação de uma paixão. Assim, ía aventurando as mãos na tua roupa,
fronteira para uma pele quase desconhecida. Até que me levantei, e baixei as
calças bem diante do teu rosto duro de emoções. Foi como ficar nu em frente a
um muro de pedra.
-
O que é que queres? – Perguntaste-me.
- Espero que não precises que te faça um desenho. – Respondi-te, tão assertivo na altura.
- Espero que não precises que te faça um desenho. – Respondi-te, tão assertivo na altura.
- Querido guarda lá
isso sim. Que a mim as azeitonas salgadas e os cornichons provocam-me azia. E além disso, vou sair. Não te tinha
dito já? Não! Mas vou.
- O quê? Repete lá
isso.
- Queres que repita o
quê, que vou sair ou aquilo sobre as tuas azeitonas?
- Repete tudo.
- Tu ouviste. Sou
aquilo que faço e farei aquilo que sou. Por isso, vai lá brincar com as tuas
plantinhas queridas, vai brincar aos jardineiros e não me chateies mais. Não
ganhas nada que dignifique esta casa, que pague alguma conta, mas andas
entretido, e isso não pode ser mau de todo.
-
Gosto do que faço, que culpa tenho se não ganho por isso? Espera, onde vais? Não
te quis aborrecer. Volta. É que faz quase um ano que não fazemos amor. Não
sentes falta?
- Amor? Sabes lá o que é isso. Queres
foder-me como nos velhos tempos, é isso o que tu queres?
- Não! Quer dizer... claro que quero.
Mas, sobretudo não quero é aborrecer-te.
- És lá capaz de me aborrecer. Já não
importas o suficiente para me aborreceres. - Um homem esperto dificilmente
precisaria de contar pelos dedos as razões para a entender. Eu só contava dias
felizes, e a felicidade nunca traz grandes dramas a um quotidiano, arrebenta-o somente, quando deixa de ser. Vê-se
constantemente gente que nem sabe sair do seu próprio caminho sem se
atrapalhar. Dizem-se felizes, assim quietos. Percebo agora que não passam de ervas-daninhas nas suas próprias vidas. Nenhuma erva chegará jamais ao posto exultante de uma flor, jamais será assim tão perfeitamente feliz.
- Porque dizes isso?
Que grande maldade de se dizer. Precisamos mesmo de falar.
- Não vale a pena
falarmos, para quê, quanto mais falamos mais nos magoamos um ao outro.
- Fica. Prometo-te o
que quiseres. Prometo-te um jantar romântico inesquecível. Que tal?
- Estou sem apetite.
- Não sentes o
cheirinho que vem da cozinha?
- Não me chateies com
cheirinhos, não estou...
- Quem me dera poder
ainda senti-los.
- Não me chateies com
isso também.
-Mas chateio-te com
tudo?
- Sim. Com tudo.
- Estou a
implorar-te. Estou de joelhos, vês?
- Puxa as calças para
cima querido, e pára de me irritar por tudo e por nada. Estou sem vontade para
ti. Estou quase com o período. Devias saber isto também.
- Eu sei meu amor, eu bem sei. Mas, se
ao menos houvesse alguma coisa que pudéssemos tentar, tu e eu. Queres que te
prepare um chá de pau-de-canela. Eu faço-o. Já puxei as calças para cima vês?
- O que queres então?
- Podíamo-nos sentar os dois aqui, tu a
veres televisão, por exemplo, há aquele concurso das pessoas que cantam que
gostas tanto, e eu podia ficar aqui quietinho a olhar para ti, sempre foi a
minha especialidade, olhar para ti, e permanecermos assim uma hora ou duas, em
paz, voltarmos a habituar um ao outro, devagarinho, o que é que achas? – Nada.
– Perguntei-te uma coisa. Por que não me respondes?
- Vou sair. Está mais
que respondido.
Fiz recurso à memória para me lembrar
disto, no tempo em que já não colhia o prazer da comida pelo cheiro que esta
deitava, e soube que essas recordações não me falhariam no meu intuito de te
ensinar a lição que merecias.
Em Agosto, quando as
bagas ficaram vermelhas, no exterior da janela da cozinha da Ermelinda,
pendendo de tal modo que se podia enfiar a mão pela janela da cozinha e apanhar
algumas, estava na altura de gozar a vida destruindo pelo caminho, um grande
número de sonhos.
Talvez a culpa fosse
minha. Porque não? – Eu que vivia aterrorizado por balões com formas de animais,
por achar que me ameaçam, que são
agressivos e cruéis, e por sentimentos profundos também,
e vivo rodeado de sentimentos… Metem-me um bocado de medo. De resto, até
sou uma pessoa normal. – É bem provável. – Há no
nosso quarto uma arca em madeira. Tem-me servido para depositar roupa interior
usada. Cartas, sobretudo. Todas as cartas e bilhetinhos de amor que te escrevi.
As próprias palavras que me derrotaram. Confesso-me vencido por toda esta
maldade escrita. Dispo-me aí todos os dias, e guardo essas peças, sempre com a
intenção de as transportar para uma fogueira no jardim. – Ainda não fui capaz.
– A fechadura da arca parece forçada, pelo lado de dentro.
No mês seguinte voltei a tentar.
- Vais sair outra vez?
- Tornaste-te tão picuinhas, - disse-me
- meu Deus, tão monótono, não dizes nada que me interesse, e não é possível
vivermos seja com quem for que não nos interesse, havendo pessoas que nos achem
divertidas, arrojadas, se calhar até fascinantes, o João Paulo, por exemplo,
acha-me fascinante. Tu achas-me fascinante ainda?
- Eu sou
o teu marido...
- Foi o que pensei. Meu querido, fosses
tu um homem pedir-te-ia já o divórcio – Disse-mo sem ouvir o que dizia, de
olhos fechados, à traição. – Sendo assim, vou sair.
- Espera. Não vás já. Vamos conversar
primeiro.
- Conversar para quê?
Satisfeito por me ter preparado até
este ponto, entrei na cozinha, e dei dois toques de hortelã no preparado, para
me exacerbar o ódio. Cheia de desprezo por ti mesma, ainda que nunca o
reconhecesses, berraste-me que não me incomodasse, que nem estarias em casa, ou
disposta a apreciar tal festim. – Festim que fosse. – Foram as tuas exactas
palavras. Que te sentias irritada por dentro. Que o ar fresco te faria bem. Que
estavas com o período e precisavas de desanuviar a raiva.
Grande cabra!
Julgas que ninguém te observa? Pensas
que eu nunca te observo? – Eu sei, eu sei como são as bonitas. As bonitas sabem
sempre. Falsa indiferença e ar superior. Uma provocação, não passa disso. Vocês
querem ser observadas. Tu queres. Porque te maquilhas então. Porque te
penteias, te vestes tão bem? Para mim? Porquê esse risco oblíquo da carne tenra
dos teus seios sempre à mostra? Para mim? Não! Não é para o teu marido que
nunca queres ver. Não! É para outros repararem. Para outra pessoa reparar. O
João Paulo! Esse vil ladrão. Mas eu reparei também. Sim, eu vi-te como aquilo
que tu és, logo depois daquele telefonema. Agora, tens de pagar por todos os
teus crimes contra mim. Ah tens pois! O último desejo de um condenado, suponho,
é irrecusável!
- Não saias, por favor. Fazemos cinco
anos de casado hoje, não te recordas?
- Não vais trabalhar para a rua da
Igreja, como tens feito todas as noites nestes últimos meses? Cuidar do
jardinzinho moribundo da falecida?
- Já acabei, ele agora cuida-se
sozinho. Anda por lá um dos netos a rondar, a cheirar a herança esgazeado. Não
me quer por lá. Fica. É uma noite tão especial. Fiz o jantar, para nós. Para
ti.
- Tenho planos...vai ser muito difícil
adiá-los...
- Tenta lá. Fazemos anos de casado
sabes?
- Já mo disseste.
- Fazemos os dois. Era suposto saberes.
- Eu sei.
- Então? Precisas de apanhar ar, eu
sei. Tens dores?
- Não, não tenho dores, já estou quase
no fim das regras, mas que fixação a tua? Vou sair na mesma.
- Reparei que tens sangrado muito nos
últimos dias.
- Agora queres controlar-me o sangue
também? Fazes de tudo para conduzir a conversa para esta zona. – Enganchaste uma mão cheia de dedos no
côncavo infinito do teu sexo. - Olha, usa a mão. Assim, vês? No teu caso a
diferença é pouca. Vou arranjar-me, vou lavar-me e vou sair. Pouco me interessa
o resto.
Grande Puta!
O grande bicho em si, a estrela deste
banquete, macerei-o em vinho por horas tantas que lhe perdi a conta. - Não
haverás de tomar como verdadeiro o que te espera de misterioso sabor, isso te
asseguro.
Ao odre de vinho, adicionei os
preliminares de um breviário infinito de órgãos e miudezas: os rins marinados
em madeira, os miolos em manteiga branca, a língua estufada com nozes, as
tripas salteadas em tomate, o focinho, as patas e sobretudo, especialmente, a grande
estrela do festim: o órgão macho do bicho; pois sei-te glutona no mau partido
que dele tiras. Não é nenhum cornichon
não senhor. Sei-te um bicho também e hei-de ver-te entupida com este corno. Não
és uma mulher, nunca uma mulher. És um bicho entesoado, só isso.
Deixei cozinhá-lo mansamente no
descanso suave de uma cama de ervas, horas e horas, para que te desfaça essa
boca e para que não te açoitem suspeitas de nada impróprio.
Ah, mas o melhor estava por vir! –
Desafortunado animal que iria ter o seu fim nesse teu ventre abominável de mulher
maldosa, de ímpio bicho lascivo, mas o desfecho assim o exigia. Ao porco o que
é do porco! De hoje não escapas.
Finalmente chegara a hora. As portas
estavam todas trancadas. Escondi-te as chaves, o telemóvel. Desliguei o
telefone. Espalhei as bagas da Ermelinda pela mesa da sala, queria que as
visses, que as cheirasses, queria que as levasses à boca. Como eu queria que as
tivesses levado à boca. Aproximei-me com curiosidade do lume onde a tua
perdição assava tristemente, em suave brandura, e só pude esconjurar uma última
maldição contra ti.
- O que se passa com as portas?
- Diz?
Apareceste na cozinha finalmente.
- O que fizeste às portas? Pensas que
me podes trancar aqui em casa? És mesmo patético.
- As portas? Não faço ideia meu amor,
estive a tarde toda aqui na cozinha.
- Que parvoíce a tua. Vou sair na
mesma, nem que tenha de arrombar as portas por dentro. Mas dou-te alguma razão.
Que bom aspecto que isto tem. A apresentação está.. – Ouviu-se um clique sonoro
dos teus lábios. – Quase tenho pena de não poder ficar. – Lançaste-me um riso
maldoso. Foi o pior que poderias fazer, esse riso. - Faz bom proveito.
- Eu não te disse. – Tentei manter a
compostura. Grande Puta! - Toma,
prova isto.
- O que é?
- Prova.
- Só um bocadinho para me apaziguar a
gula.
- Maldita
Rameira!
- É mesmo muito bom. O que é, porco?
- Sim é porco. Nunca comeste uma carne
assim, garanto-te. Está bom não está? Come mais um pouco, senta-te um bocado e
come, depois sais. Ainda tens tempo. Come lá, aprecia. Fiz isto com tanto
carinho. Fi-lo para ti sabes?
No fim acabaste por te sentar. Vitória.
A voz distante da Ermelinda
ouvia-se distintamente no meio da ilha da cozinha quando, em tantos fins de
tarde, naquele seu canto impoluto do planeta, os jovens casais de namorados entrelaçavam
as pontas dos dedos das mãos, deixando um rasto de beijos líquidos entre os
bosques de fetos, o canedo sobre o pequeno rio, as rosas, o arvoredo, a atenção
da entrega de todos os sentidos. Eu abria os portões de par em par e deixava-os
entrar. Sei que a Ermelinda não me recriminaria o gesto.
Assim passei muitos
meses a caminhar, a caminhar de mão na mão por infinitos chãos de terra, num
sonho de verdes sem fim, atravessando uma linha de pensamento que nos deveria
conduzir, incansavelmente, a um espaço para sempre nosso, secreto e
intransponível. A fingir pelo menos. – Não o foi. Estava tudo errado menos o
jardim.
Maldita meretriz.
Da carne rubra, resfolegante, subia uma
coluna de vapor que se elevava até ao céu como um pilar sagrado, um flagrante
sarcasmo de ervas finas, beringela, tomate, gengibre, cardamomo e o teu
sangue sujo!
Um veneno natural. Deverias ter
esperado isso de mim. Mas não, és cega. Só vês carne e luxúria. Só entendes a
perdição, e assim te perdeste por fim. Sangue, minha querida. Imenso, guardei-o
por meses a fio, a pingar impuro do esgoto da tua vagina, da minha ferida
aberta. No entreabrir dos teus olhos vi-te o passado a morrer, numa pupila cada
vez mais pequena, e assim no teu último silêncio todo o amor a morrer de
surpresa… - a morte é vermelha por
inteiro minha querida!
Quatro meses de sangue que
diligentemente colhi do nojo das almofadinhas que deitavas ao lixo. Colhi, espremi,
mantive líquido, quase perfumado do aroma das bagas que lhes misturei e guardei
religiosamente para agora. Nem imaginas o trabalho que isto me deu. Mas valeu a
pena, é no trabalho que se encontra as maiores recompensas. – A ironia! O teu
sangue morto descartado como inútil. O teu próprio sangue morto. Descartado por
ti, como eu fui, a ser o teu algoz. – Como eu me rio disto ainda, voltei a
rir-me como um perdido enquanto te enfiava o pénis mole do porco pela goela
abaixo. Deslizou pela tua garganta como um gole de água num dia de muito calor.
Ainda não parei de rir. A tua expressão. A tua expressão de surpresa era
impagável. Que me dizes destas azeitonas agora? Estão salgadas, estão? Não
consigo parar de rir.
O teu sangue esquecido, Meu Deus!
Fulminante se ingerido sem regra e bem disfarçado no seu sabor almiscarado
juntamente com as bagas da Ermelinda para lhe incrementar a acção fatal. Não
sabias disto pois não? Claro que não. Quem é o parvo do jardineiro agora? Assim
que morrerás pelo teu próprio veneno.
Morre Puta, morre!
In: "Estórias de Amor para Desempregados"
Contos - 2014 - Miro Teixeira
- Por publicar -
Comentários
Enviar um comentário
Este é o meu mundo, sinta-se desinibido para o comentar.