A capacidade humana de desbravar nichos empedernidos, aquelas duras carapaças que todos vão carregando num tempo ou outro da existência, é espantosa, e merece muito justamente todos os filmes, músicas, livros e gente anónima sem palco visível que se aplica neste labor de desbaste afincado do "Homem-Bicho" como criatura acossada dentro dos seus medos e frustrações.
É que todos levantam em seu redor, mais ou menos barreiras de defesa, mesmo em circunstâncias mais descontraídas, e a preciosa capacidade de adaptação em contra-corrente a este fecho cavernoso fascina-me imenso.
Há dias, voltei a revisitar um velho romance que escrevi em 99, muito pela generosidade de um bom editor, que não tendo dinheiro ou contactos, ou abertura sustentada no mercado livreiro mais dinâmico e ultra-comercial destes tempos. Não tendo hipótese de exposição, mas mantendo o bom senso, continua a aplicá-lo na tenacidade das escolhas que ainda vai fazendo dos autores que publica.
O Jorge (que é esse mesmo editor) depois de me publicar uma novela, o "Corre!", de impacto quase nulo no panorama literário mercantilista actual, não desistiu de mim, e pediu-me mais trabalhos. Mostrei-lhe então esse velho romance empoeirado, sobre a cisão da amizade de dois melhores amigos, mal agourados no meio de um amor pela mesma mulher, que os dividiu dentro do Portugal turbulento e ignorante do tempo da guerra colonial. - A sua resposta caiu-me logo no goto; - Sim, publico-o. - Porque se escrevo como quem se atavia da vontade de existir por alguma razão superior, assim me enfeito e admito que o faço para ser lido. - Conheci um escritor que diz que os livros são para se manterem dentro de nós, para nunca perdermos o sentido ético daquilo que temos de mais precioso. - Curiosamente, conheci-o aquando da apresentação de um livro seu, para o qual, (desconhecido que lhe era) me urgiu que fosse assistir. E eu fui, e fiquei decepcionado, que digo, fiquei revoltado, com a displicente arrogância dos que já nem se preocupam em desmantelar certos "nichos" gigantescos, por serem superiormente cultos e ubíquos.
Isto não era para mim, mas fui fraco e comprei-lhe o livro na mesma e vim para casa de metro, revirando a cabeça de várias formas enquanto me esforçava por tentar compreender a razão de tudo aquilo que tinha em mãos e que me custou saudosos €20.
Nunca teremos regresso, mas o que fazemos fica-nos gravado na carne eterna e é por isso que escrevo, para deixar notícia de que estive aqui. Por isso me lembrei desse romance de 99 e dos aerogramas. - As voltas que eu dei para aqui chegar!
Tomou-se conta de que nos anos que durou a guerra colonial, cerca de 200 milhões de aerogramas tenham sido recebidos e enviados. - Menciono-o aqui porque o escrevi, e se o escrevi foi porque me agradou esse aspecto da humanização daquilo que, de todos os modos parecia ser completamente desumanizado.
Os aerogramas eram aqueles pedaços de papel fino e desdobrável onde se
descreviam os horrores da guerra longe dos olhos da censura, e foram, talvez, o meio de
comunicação mais importante entre os militares e suas famílias e amores.
Em meros 3grs. de papel se aquietavam ou desassossegavam corações.
Uma portaria obscura, mas sensata, ditou que estes deveriam ser oferecidos aos soldados portugueses sem custos, isto logo me colocou numa outra perspectiva a excepção das coisas mais descabidas, como a ditadura férrea e a teimosia da colonização. Até no meio do absurdo existem laivos de sentido. Os Aerogramas serviam esse fim maior. E assim, a saudade, os desabafos, a esperança, as despedidas, e o amor também, todo aquele amor ao longe, faziam a viagem transocêanica de lá para cá e vice-versa. - Aos civis custava-lhes três tostões o envio daquela folhinha azul, que quando totalmente desdobrada, parecia um pássaro de acalmia. Para os soldados, como referi, o Estado, o mesmo Estado que os mandava morrer na distância de casa, nada cobrava, nem a rasura do que aí era dito.
Para além das letras, muitas vezes esborratadas pelas inevitáveis lágrimas, neles eram inscritos poemas e desenhos. E tanto era escrito e lido à mesa do rico como do pobre.
O Aerograma era o veículo mais democrático da saudade, e não haveria qualquer ética erudita ou castradora que o inexplicasse. Não houve melhor palco mais abrangente para o amor e o cuidado das almas atormentadas pela separação que esse. Graças a essas missivas aéreas desmantelaram-se todos os nichos, todas as carapaças, e fizeram-se até casamentos por seu intermédio. Os Aerogramas de alguma forma, acabaram por criar gerações vindouras e isso interessou-me tanto que escrevi. Porque escrever é para isso que serve também. Para que os outros saibam as nossas histórias e as histórias de muitos e para que estas não fiquem cá dentro apenas, a fervilhar algum tipo de ética intelectual caduca.
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