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Cartas do Além


 Querido amigo,

Ontem li algo que me pôs a pensar em ti. Suponho que terá sido dito pelo Papa Francisco, estava pendurado no mural de alguém, como mais uma daquelas inalienáveis verdades que nos deixam todos molhadinhos de inveja, por nem nos termos lembrado de escrever aquelas palavras tão redondas de verdades imediatas. E digo suponho, porque hoje em dia é tão difícil determinar seja o que for do que vai sendo dito por tanta gente. É tudo tão confuso. Diz-se, diz-se, diz-se e não há sumo algum em tanta palavra escrita por medo. A expansão dos absolutos avançou ao contrário: Primeiro foram os povos, depois os lugares e agora são as palavras que se tornaram tão globais, tão comuns, que já nada parece fazer grande sentido aqui mesmo ao lado. Está tudo entregue a um imenso esbulho de total ridículo. Queremos todos chegar além do nosso espaço pessoal, e esquecemo-nos de o tratar convenientemente. Os nossos amigos de perto, os nossos cafés de esquina, as nossas festas e tertúlias, onde divagámos lúcidos, com ou sem alcóol, sobre aquilo que escrevemos e dizemos em público só parecem querer voar para longe, para longe do nosso próprio lugar tão sagrado. - É um erro fatal isto.
Guarda as tuas melhores ideias para ti apenas, peço-te, para que tenhas sempre algo único, algo só teu. Um dia, quando vires o teu fim a chegar num vento mais forte, apressa-te a escrevê-las num caderno e deixa-as aos teus filhos, aos teus amigos mais chegados, ao teu amor de sempre, há eternidade. 
Ainda que te pareça lógico disseminar, é um grande engano. É urgente contrariar este progresso falacioso e entregar-mo-nos à regressão tribal. Sim, eu estava enganado, sempre estive enganado. As tribos importam. As tribos são o futuro da humanidade, assim como foram o seu passado mais remoto. Pequenos povos locais, ricos em palavras nascidas de grandes ideias expressas por indivíduos singulares. É por isso que gosto deste Papa, mas lamento-o também. É um ser humano único aprisionado na mais bem engendrada globalização de todas: a religião.
Talvez aches estranho mencionar aqui o Papa. O mais estranho porém, foi ter lido uma mensagem do Papa e depois ter pensado em ti. Talvez tenha sido ainda o rescaldo das lembranças fortes de ontem. Lembrar-te-ás com certeza que ontem foi o fictício dia da Mãe, embora me contrarie tanto o facto da Igreja o ter mudado de 8 de Dezembro para ontem. A minha mãe era muito religiosa, como te recordarás, e fez-me cumprir o mínimo dos requisitos católicos possíveis para não me deixar aqui, totalmente num desamparo, chegado o dia, que já chegou faz dez anos, quando já cá não estivesse para me guiar.
A contradição de tudo isto na minha cabeça, foi ter pensado em ti por causa de algo que este Papa disse no dia falso da mãe verdadeira que sempre me tentou incutir os valores da religião que, no fim de contas, lhe mudou o dia da celebração para ontem. E isto porque em Dezembro as pessoas ficavam eufóricas, esbanjavam dinheiro em prendas para as mães e não ligavam nenhuma à Imaculada Conceição, mais um daqueles muitos nomes que a Igreja arranjou para celebrar a mãe de todas as mães, Maria, mas que não podia ser celebrada com graneis abusivos de chocolate ou ramos espalhafatosos de rosas brancas, ou similares.
Tanta é a inveja que consome o sagrado face ao pagão, que também isto deixa de fazer sentido algum. A Igreja, receosa, vai tentando o controle possível, mas de nada adianta. O dia dos namorados celebra um santo inundado por praline cremoso e fancaria dos chineses. Os dias do Pai e da Mãe, haveriam de exultar os progenitores terrenos do Cristo, que até no dia do seu nascimento, foi substituído em atenções por um gordo barbudo, inventado pela Coca-Cola Company. Foi nisto que a globalização nos tornou; servos do paganismo. E está bem, até certo ponto. É muito bem feito para a Igreja, que se deixou assoberbar pelo consumismo e acabou devorada por ele. - Afinal, não foram esses mesmos ritos pagãos que a cimentaram, com pequenos toques geniais de mudança?
Meu grande amigo, dei algumas voltas e acabei no mesmo lugar. Continuo a abominar a religião. Todas as religiões. Fiz-me de ateu depois do fim da minha mãe, para me continuar a sentir humano. Gosto um pouco deste Papa. Amo para sempre a minha mãe. Pensei mais uma vez em ti, no dia de ontem, e em tudo aquilo, global, que nos separa neste momento. Ainda se ao menos fosse uma questão de distância, poderia pensar menos. Mas não, estás mesmo aqui ao lado e pareces para sempre perdido de mim.
Ontem chorei sozinho até adormecer, sabias? Foi mesmo aqui, por baixo desta janela que tu bem conheces.

Do teu amigo de e para sempre,

Casimiro Teixeira
4 de Maio de 2015

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