Avançar para o conteúdo principal

Conversa de mau fígado


- Definitivamente afirmo-te que qualquer derrotado tem o potencial para ser mais forte que qualquer outro.
- Outro quem? - Questionou-me de copo no ar.
- Não te parece óbvio?
- Não, não me parece. Se ainda ao menos o explicasses melhor. - Deu um longo gole primeiro, e depois um segundo, mais rápido até esvaziar o copo.
- Que outro mais derrotado que este, claro.
- Ah! - Exclamou longo, com um desdém carregado.
- O que queres dizer com isso?
- Com o quê?
- Essa tua exclamação desrespeitosa.
- Que andamos aqui aos círculos meu velho. - Voltou a encher um terceiro copo. Quando lhe quis colocar um cubo de gelo, recusou-o com a mão. - Gosto da pureza ambarina da minha bebida. A água, mesmo no seu estado mais sólido, transforma todos os uísques em mijo. Quando tiver sede beberei água, por agora, só me apetece esta realidade viciosa.
- E isso é o quê, a tua filosofia de vida?
Riu-se para dentro - Dizias algo sobre... derrotados? De-rro-ta-dos! - soletrou alto. - Meu caro, procuramos todos a melhor forma de evitar o cansaço. Cumpres todas as ordens? Respeitas todas as regras? Fazes exercício? Vais ao médico de família de tempos a tempos, para saberes se ainda estás vivo? Lês os livros certos? Fodes ao Sábado à noite depois de vires dos bares? Tens muitos amigos assim como tu, não tens? Eu tenho poucos, e bastam-me. Deixa-me adivinhar; és daqueles tipos que se considera sempre muito honesto, que abomina aqueles que te colam rótulos nas fuças. Sim! - Riu-se novamente. - Nasceste bem, mas passaste por um período incómodo de nulidade ao cresceres, e agora és assertivo e dizes as coisas pela boca fora porque os teus amigos te acham profundo e extremamente inteligente. Estou perto?
Aquilo precisava de uma ordem moral de coisas precisas contra coisas desnecessárias. Arrisquei o meu raciocínio mais elevado.
- Se alguém misturar uísque com uma realidade fria, fica com uma realidade mais quente não te parece? - Disse-lhe, enebriado de auto-confiança.
- Ah!
- Ah? É só isso que tens para me dizer? Esperava mais de ti.
- Bingo, meu bom amigo! - O seu terceiro copo já devolvia a certeza de um fim anunciado.
- Afinal sempre tenho razão. Todo o derrotado consegue ser mais forte que o outro derrotado que vem a seguir.
Senti-me tão grande depois de falar. Não podia haver nuvem de onde me derrubassem depois disto. Ele ponderou por alguns instantes. Olhou para a garrafa pousada na mesa. O uísque fugia-lhe da vista demasiado rápido.
- Bem, e então? - Insisti.
- É bem provável que a mistura do uísque com a realidade, a faça melhor. O uísque dá-nos olhos melhores, diferentes daqueles que já temos por natureza. Beber com respeito ao que se faz, e com quem se faz,  abre todo um universo de boas possibilidades. Beber é sempre melhor do que não beber. Fumar é sempre melhor do que não fumar. - Foi aqui que acendeu a décima mortalha desta conversa, porque Griswold gostava do dramatismo teatral nas frases. - O que tu e todos os outros derrotados haveriam de considerar - soltou isto entre uma baforada irremediável de qualquer defeito. - é que estatisticamente, morrerei mais cedo, logo, não tomei as vossas opções essenciais para se estar vivo. O que vocês derrotados, - e isto pareceu-me desenhado no ar circunspecto como uma obra de arte - falham em compreender, é que, talvez seja a dureza fria da realidade que estraga, e torna o bom uísque num mau uísque. Uma bebida definitivamente derrotada pelo compromisso óbvio.
Continuamos amigos até ao dia da sua morte.




Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci

António Ramos Rosa, in "O Grito Claro" (1958)

Três!

  Fui e sempre serei um ' geek '! - Cresci com o universo marvel nas revistas que lia em um quase arrebatamento do espírito em crescimento. O mesmo aconteceu-me com " Star Wars" , e com praticamente todos os bons  franchises que me animassem a vontade.  Quando este universo em particular, ( marvel ), surgiu finalmente em forma de cinema, exultei-me, obviamente. Mais ainda quando tudo se foi compondo em uma determinação de lhe incutir um percurso coordenado e sensato. Aquilo que ficou conhecido como MCU (Marvel Cinematic Universe). A interacção pareceu-me perfeita. Eles faziam os filmes e eu deliciava-me com os mesmos. Isto decorreu pelo que foi denominado por fases. As 4 primeiras atingiram-me os nervos certos e agarraram-me de tal maneira que mormente uma falha aqui ou ali, não me predispus a matar o amor que lhes tive. Foi uma espécie de idílio, até a DISNEY flectir os músculos financeiros que arrebanhou sabe-se lá como, e começar a comprar tudo o que faz um '