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Até a morte chora melhor do que eu e tu.


O telefone fixo toca sozinho, é o tipo dos seguros a vender-me paz de espírito da distância do outro lado da linha. Pode estar na Boavista, em Massamá ou em Bangalore, não faço ideia de onde virá aquela segurança toda. Daqui, e até quando puder pagar as prestações não preciso mais preocupar-me com a vida ou com a morte. Fico seguro e bem seguro. Disse-lhe que não queria. Nunca me fez tão pouco sentido a paz de espírito. Sinto-me tão sujo por já me sentir bem seguro, por ser branco, europeu e estar aqui sentado confortavelmente a escrever isto. Nem é daquelas sujidades boas que emergem de um rebuliço na palha com uma rapariga, de uma brincadeira no parque com as crianças, de um dia de trabalho honesto. Não, de todo. Sinto-me imundo sem ver jeito de me lavar por dentro.
Quando inesperadamente o meu pai, cidadão nacional octagenário, bateu com a cabeça num muro de pedra, abrindo-a, houve um momento de pânico na família e durante horas ninguém foi capaz de reagir ou tentar um plano de acção, excepto talvez o meu irmão mais velho, que lá estava e conduziu-o de imediato até à segurança da sua salvação. 
Senti-me mal porque devia estar ao seu lado e não estive nesse instante. O meu pai caiu sozinho e aquela pedra lisa do murete da praia dos banhos, poderia ter sido o seu fim prematuro. Não o alcançaria mesmo que quisesse, escapar-me-ia, sem razão aparente. A morte ri-se sempre das nossas fragilidades, e é assim que as coisas são.
Não foi o caso, não aconteceu porque a morte estava ocupada a entregar o IRS e nem se deu conta da queda do meu pai, ou algo do género. Também não aconteceu somente porque o meu pai é um cidadão nacional do continente europeu, assim como o meu irmão, mas que foi uma grande ajuda sê-lo, lá isso foi.
Aconteceu, como tantas coisas fortuitas, boas ou más acontecem, e depois de alguma dose de dor e sofrimento, o meu pai voltou a casa e continua a sua boa existência, com o meu irmão a seu lado. Dou graças por isso.
Três dias depois, houve um barco apinhado de gente em fuga da morte certa, que afundou no Mediterrâneo. Foram mais de 700 que ali ficaram sepultados a poucas milhas de praias tão boas para qualquer ocidental não botar defeito. Dizem as estatísticas que afinal foi só mais um barco, as pessoas que para ali jazem já alçam a barreira dos cinco milhares, e isto em contagem activa. Como a Líbia deixou de ser um tampão, o sangue continuará a correr para este lado.
As estatísticas conseguem ser mais duras que a própria morte, provando que esta só se distrai de vez em quando, e nos lugares certos. Imaginei-a logo antropomorfizada, como nos livros antigos ou nos filmes profundos, a chorar a perda inútil daquelas pobres criaturas que antes lhe haviam fugido de outro lugar onde esta lhes contava os dias. Pareceu-me tudo uma ficção descabida na minha cabeça demasiado fértil, até me lembrar do filme do Bergman e acabar a chorar, sozinho, como um piçinhas. Pois as coisas não haviam de ser assim. Senti-me inútil, patético, medíocre, e estranhamente repleto de uma paz de espírito excessiva de que não necessitava naquele momento. Só me lembro das águas do Mediterrâneo uma vez. Eram quentinhas, convidativas e nem me lembrei de mergulhar para contar os mortos. Estava ali tão seguro a boiar, que me senti Romano e aquele mar era meu.
Parece ignóbil da minha parte fazer esta comparação, eu que tenho o meu pai na lista das melhores pessoas do mundo, há mais de quarenta anos, que o adoro. Lembrei-me apenas, para tentar compreender por me sinto tão sujo ultimamente. 

Foto livre retirada da Internet







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