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É preciso reinventar-se a amizade



Quando algum amigo nos despacha à pressa, e em definitivo, para aquela parte incerta, aquele limbo feio que toda a gente conhece pelo nome próprio, e quando decide fazê-lo através do quadro de mensagens privadas de uma certa rede social, é de se ficar à nora com a rapidez perigosa destes tempos.
Suponho que podemos ser sempre aquilo que quisermos, que ninguém se haverá de preocupar muito com o assunto. Ninguém que não nos conheça de lado algum, digo eu.
Podemos ser compostos, gregários, alegres, inebriados, ou então, soturnos, tristes, solitários, eternamente insatisfeitos com o estado da vida, e, regra geral uma daquelas pessoas irritantes e irritadas com tudo, podemos até ser um misto de tudo isto (a grande maioria é-o) que a única constante que esperamos, por causa de todas estas coisas que só a nós nos dizem respeito, é que um amigo as respeite também, que as compreenda ao seu próprio nível, e que nos ajude. Sobretudo que nos ajude sempre que o puder fazer.
O caminho de retorno para todos estes adjectivos é exactamente igual, aqui não se toma uma coisa por outra, não existem confusões ou enganos, estamos ambos cientes deste contrato invisível. Esta é a maior liberdade emocional que duas pessoas podem celebrar entre si.
Mas claro, nenhuma liberdade esteve alguma vez isenta de implodir sobre si mesma. 
Como muitas coisas que me acontecem, não consigo deixar de pensar nelas de um dia para o outro. A Amizade contudo, para mim, não é nenhuma mera "coisa", levo-a demasiado a sério, quero as que tenho e nunca anseio por mais. Não faço reflexões transmissíveis de umas para outras. Cada amigo é por si próprio um prémio, um grande tesouro. Perder-se um tesouro consegue ser devastador.
Podia ser que eu estivesse equivocado sobre este conceito tão estanque, para mim assim o é. Então fui consultar a grande opinião mundial. Diz assim na Wikipédia:

Amizade (do latim amicus; amigo, que possivelmente se derivou de amore; amar, ainda que se diga também que a palavra provém do grego) é uma relação afetiva, a princípio, sem características romântico-sexuais, entre duas pessoas. Em sentido amplo, é um relacionamento humano que envolve o conhecimento mútuo e a afeição, além de lealdade ao ponto do altruísmo. (...)

O mundo provou-me que não estava errado, mas alguma coisa havia de estar.
Tenho 45 anos, e mais de 39 destes, passei-os sendo sempre amigo de alguém, em boa verdade, nunca estive absolutamente só, desde os meus cinco ou seis anos de idade. Alguns sobreviveram até hoje, outros, nem por isso. Porém, em todos estes anos, só uma vez um amigo se chegou até mim e me disse cara a cara: "Já não quero mais ser teu amigo, não vejo sentido nenhum em continuarmos esta amizade." - Acabou ali mesmo. Foi um choque, em grande parte porque até tinhamos muito em comum, apesar da distância que nos separava. Não compreendi a sua decisão de inicío, de certa forma parece que estamos formatados para nunca compreender aquilo que nos desagrada, só com algum tempo em cima é que começamos a perceber. E alguns anos depois, percebi. 
Aquele nosso "contrato" havia sido mesmo quebrado pela distância, não me pareceu possível que tal coisa pudesse acontecer, mas assim foi. A nossa amizade nascera na convergência da oportunidade do período em que estivemos sempre juntos, cresceu e tornou-se enorme nesse tempo específico, e findo este, tornou-se quase um estorvo, como um objecto em desuso que só servia para atravancar o nosso armário emocional. Tropeçavamos nela vez em quando, ficavamos a olhar para aquilo a forçar a memória a trabalhar, e depois voltavamos a deposita-la nos arrumos. Afinal era possível acabar-se uma amizade com palavras trocadas, mas assim, na face, olho no olho e com o som da própria voz.
Muitas outras, menos sólidas, terminariam sem darmos por isso sequer. Um dia fomos muito "amigos" e no outro até se evita a troca de um olhar ocasional. É também possível que isto passe com um mesmo tempo que rectifique a ordem das coisas, mais uma vez, sem a força de ninguém e sem darmos conta.
Só que, aparentemente, tudo isto só teve lugar noutros tempos, agora é tudo rápido e fácil, até se apagam verdadeiros amigos da lembrança com o poder a jacto de duas ou três frases escritas a sangue frio, ou com o sangue quente, nem sei bem, eu não estive lá para ver. Podia lançar mais alguns adjectivos para esta fogueira: caturra, severo, orgulhoso, desleal, complicado, insensível etc etc... alguns destes cabem-me direitinho, outros não, todavia, se ambos não conseguirmos reinventar a nossa amizade, o resultado final será sempre apenas um: desolador!

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