O Relógio de Natal
Aquela véspera de Natal veio encontrá-lo completamente
perdido. O presépio por armar, e o mal-amanhado pinheiro de sempre, aquele que
todos os anos desempoeirava dos arrumos, esquecido num canto, junto ao bar,
desconchavado em quatro ou cinco fanicos ainda por montar.
O carrilhão austero do relógio anunciava cinco batidas
aterradoras. Garcia era íntimo deste ruído de címbalo, quase como se ouvisse a
voz do pai a chama-lo. O relógio havia sido a única herança que conseguira
surripiar do sarrabulho das partilhas entre os seus três irmãos, e remexia-se
em cuidados extremosos para o manter em perfeito funcionamento.
- Cinco horas! – Exclamava em surdina. – Não vou ter
tempo.
Multiplicava-se, corria, deliberava e providenciava mil
coisas, mas a atrapalhação era muita, e só Albina conhecia o lugar de cada
coisa naquela casa, ele, cumprira a sua função de recolher os enfeites, a
árvore artificial e as peças do presépio dos seus lugares de repoiso anual na
confusão dos arrumos. O resto era com ela, era sempre com ela. Só Albina sabia
o lugar certo de cada peça, para que lado se viravam os reis magos, o trajeto corriqueiro
das ovelhas, e em quantos milímetros de palha se podia deitar o menino. Somente
ela tinha esse trejeito de bom gosto de combinar as cores dos enfeites e a
sabedoria infinita de escolher a toalha de mesa certa para a ceia dessa noite.
- Que sei eu de decorar pinheiros? – Pensava Garcia
coçando a cabeça com uma peça do presépio.
Os segundos porém, não se compadeciam de si, e já sentia
os sinais exteriores de intranquilidade a aumentarem. Olhava para o enorme
mostrador do relógio, depois para a porta da rua e por fim para o amontoado de
enfeites derramados no chão da sala, postos ao desabrigo de qualquer
organização.
- Tenho de me arranjar de qualquer forma. Tudo tem de
estar perfeito, dê por onde der.
Viu a sua própria imagem reflectida no espelho de talha
dourada por cima da lareira, sentiu-se de imediato ridículo, com aquela maldita
boina vermelha e branca. O seu reflexo olhava-o de volta, como que ofendido, e
mais incomodado ele ficava.
- Que raio de altura para isto! – Exclamava virado ao
espelho.
Sete e vinte da tarde. Sem que se apercebesse, tinha
estado mais de duas horas sem mexer uma palha, atarantado pelo castigo
do tempo que lhe comandava o relógio, de onde não conseguia tirar os olhos.
A campainha da porta repenicava uma vibração metálica há
algum tempo. Era a D. Carolina com a doçaria encomendada.
- Então? – Perguntava-lhe ela com as mãos a transbordarem
de travessas e cestas. – Já está?
- Ainda não sei de nada, tarda em chegar! – Respondeu-lhe ele com um ar
constrangido.
- Uiii... isto por aqui é que ainda parece muito atrasado! –
Exclamava de volta, furando com o pescoço a fresta da porta. – Precisas de
ajuda?
- Não. Eu cá me arranjo. Obrigado por tudo, depois a
Albina faz contas consigo. Deve de ter a sua família à espera, não?
A mulher não parecia muito inclinada a desamparar-lhe o vão da
portada, prostrando-se com um sorriso estranho à sua frente mirando estática o estado
caótico da sala.
- Tens a certeza? O primeiro é sempre complicado. –
Diz-lhe. – Vai ser um Natal diferente, tu vais ver. – Garcia
devolveu-lhe um sorriso desmaiado de angústia, olhava para todos os doces que a
mulher trouxera, para o interior da casa e compreendeu que estava metido em
sarilhos.
Apercebendo-se do seu estado pálido e sumido em
consumição, a mulher soltou a única interjeição de que se lembrou:
- Alegre-se homem, vai ser pai! Bem... Feliz Natal!
O relógio do seu pai batia as sete e meia, e nem sequer o
pinheiro estava de pé. Garcia sentia-se a desfalecer pelo atropelo daquela
afirmação.
- Porra, é mesmo! Feliz Natal.
Este texto foi publicado em 2011 na colecção de contos das Edições Vieira da Silva: "Novos Contos de Natal"
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