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Televisão para os olhos certos.


Abri um canal de anatomia humana no capítulo intitulado: Ironia da carne fora-de-prazo! - Tanto poderia ser um desses programas da manhã, onde velhos carentes telefonam para os seus quinze minutos de companhia, como uma leitura do destino plasticizado em cartas, ou a infusão profunda na temática da doença de Crohn. É tudo igual. Calhou de ser um canal de anatomia humana, onde se disseca tudo. Disseca-se e disseca-se tudo até à exaustão do mais tímido pedaço de carne.
As figuras enceradas falavam indeferidas, em curtos intervalos, pausadas pelas directrizes do canal em questão. Tinham três posições diferentes e cinco dedos em cada mão, mas, nem pareciam humanas de todo. Estão ali, porque alguém menor, lhes paga para ali estarem, e para estarem a cortar, livres de remorso, bocadinhos de pessoas, divididos pelas suas três posições: de esguelha, de frente e a sorrirem inconformados.
É uma espécie de mesmerismo catódico diário. Eu sei, não é nenhuma novidade. As diferentes três posições destinam-se a cativar o olho mental do menos atento.
Para o efeito do argumento, vamos supor que eu assim estive naquela altura: ilibado de culpa e a tentar fingir que aquilo não passava de uma grande transtorno para mim. A fazer caretas à televisão e a falar sozinho daquilo tudo, especulando os meus próprios contra-argumentos. É bem possível.
Gertrudes fumava um cigarro mentalmente, certamente para acalmar a ansiedade (vamos chamar Gertrudes à pivot, que é um nome estranho, mas bonito, e vamos até imaginá-la a fumar, que fica muito bem para quem quer dissimular interesse no decurso de uma conversa unilateral.)
O esqueleto da voz do seu interlocutor parecia impressioná-la mais que tudo, escorregava-la a mão vez em quando para dentro do colo, que aparecia sempre escondido da câmera, e Gertrudes erguia-se na cadeira, como se alguém lhe espetasse o traseiro com um alfinete apaixonado.
A dada altura, o foco do estilete verbal sumiu-se neste jogo de corpos, e para mim, tornou-se mais estimulante a interacção destes dois, que a pessoa distante das lentes, que esgrimiam o destino, sem quererem, neste diálogo insensato. 
O convidado é, eminentemente civilizado e consciente, e sobre a formatura sangrenta do tema, arranjava formas de se esquivar, de sobreviver ao mini-debate, com teorias completas e orgânicas.
Até arrisco dizer que, o que me cativou mais foi a curvatura convidativa das mamas da apresentadora, sempre que este abria a boca carente. - Vêem, é exactamente como os velhos que ligam, só que ele estava mesmo ali, no estúdio, na sua frente. E, não era velho, nem chato.
No meio de tudo isto, já ninguém, nem eu, nem eles, ligavam patavina à criatura humana que pretendiam comentar como se fosse muito importante fazê-lo; assim é a televisão!
Concluí que, no que aos canais de anatomia diz respeito, não faz falta alguma a preocupação do tema debatido, tão logo que a acção que importe ocorra ali mesmo, em directo, para gáudio dos olhos carentes do telespectadores.
Debaixo dos projectores os sorrisos de parte a parte, desdobravam-se alheios ao que se dizia, ou de quem se dizia, e creio que estiveram muito bem assim. Eu gostei do romance dissimulado, deu faísca para o olho mais atento, e claro, gostei também das mamas lindamente espartilhadas da Gertrudes. Assim como assim, foi um bom momento de televisão. Que interessa para aqui aquele senhor que foi preso, e que até já foi nosso primeiro-ministro. Nada!

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