Avançar para o conteúdo principal

O som da solidão


No princípio ninguém aparece, 
nenhuma visita, nenhum som, nem um rumor. 
Lá fora, o amarelo dos candeeiros, esquece-me lentamente, 
numa dança sem brilho, de profunda ironia.
Ainda vou mantendo os verbos no presente, agarrado às consequências. 
Pode ser que só me desprezem num pretérito...imperfeito,
talvez...
Por hora, só quero que passe a noite, que chegue depressa o dia,
agrada-me pensar em luzes todas iguais, 
a virem e virem num provisório padrão.
Tudo isto é um jogo de dedos amarrados à cabeça,
pequenas brincadeiras desiguais,
ter uma mente à escala é coisa-nada que me mereça.
Já só quero olhar para a luz de frente,
para que os dias não me pesem como cangotes que são,
sobram-me tantos dias nesta conta que a vida tem,
um exército de segundos formado de propósito para me acabar.
A amizade foi a única cidade perfeita,
que nunca desistiu de me tentar conquistar.
Mas agora, já ninguém está e já ninguém vem,
a este lugar defronte, a este sorriso de boca desfeita.
Em Setembro, chegam-me sons despidos vindos de fora 
ruídos temporários, iguais só em barulho aos que ouvi quando fui criança. 
A redenção está por perto, ainda que não lhe ouça um pio,
só a sinto ao largo com o vento a enfunar-lhe o penacho,
é tudo um terrível erro, um acidente de orgulho,
quem diria que seria a soberba a matar toda a esperança?
Tanta é a vontade de trágica lucidez, do frágil e do leve,
que neste presente só me apetece o que vem, o que vem
ainda que nem o saiba exacto, para já não, ainda não, eu acho.
Não! 
não me retirem os rostos do casulo deste meu desdém.
O impacto destas luzes é quase mortal,
tapo os olhos, levanto só os ouvidos,
procuro o que vem, o que vem, e o que vier,
que chegue rápido como um animal veloz,
estou há demasiado tempo curvado em posição fetal,
preciso nascer outra vez, liberto
vir ao mundo, novo, solto de todos os sons condoídos,
de todos os choros moídos,
da deflagração da memória que não quer esquecer
desta solidão atroz...
No fim, como num canto de cisne, estou certo,
alguém irá aparecer.


 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

...Poderia ser maior! Poderia ser um escritor, em vez deste blogue vagabundo que... foda-se!

  "On The Waterfront" 1954 - Elia Kazan

O Artista que faz falta Conhecer

Um dia desenhei um rectângulo largo em uma folha de papel-cavalinho, não foi salto nenhum, pois em anos antigos, já me tinha lançado a fazer rabiscos aqui e ali. Em pastel sobretudo, e uma vez cheguei ao acrílico, mas aquilo eram vãs tentativas sem finesse alguma. As artes plásticas são um mistério ainda, e uma das minhas grandes decepções como ser humano criador. Essa e a música. Creio até que terei começado a escrever por me faltar jeito para o desenho e para os instrumentos de sopro. Assim que voltemos ao meu rectângulo. Esquissei-o de vários ângulos e adicionei-lhes cornijas e janelas. Alguns sombreados. Linhas rectas e perspectiva autónoma, cor e até algum peso acumulado. Longe do real mas muito aproximado deste. Quando dei por mim tinha o Mosteiro (Stª. Clara) desenhado, em traços grosseiros e pôs-me feliz ter chegado ali, até me dar conta que cometera plágio. O meu subconsciente foi buscar o trabalho do Filipe Laranjeira ao banco da memória, e sem me pedir licença, copiou...