O cristal mal visível da barreira final é impenetrável. O ar carregado
lá dentro, incompreensívelmente pesado,
segura, sem grande custo, toda a estrutura daquilo que anima a criatura.
- Alma? Não sei o que é isso. Talvez a tenha perdido naquela noite, na
praia, quando me apeteceu ir passaear os gatos. Mais perguntas assim e desato num pranto, pára! - Exclamou.
Mexia-se
cautelosamente como numa dança coreografada em câmera lenta. - É um
erro enorme, ainda acabas morto. - Disse-lhe depois. Nem tinha reparado
que havia utilizado o termo impenetrável.
À quarenta e dois anos que procurava os
restos imortais de qualquer coisa que lhe significasse algo mais divino
que um mero deus comum.
Nos anos 80, julgou conseguir fossilizar o futuro, pouco tempo depois,
descobriu que o futuro pertencia-lhe e perdeu definitivamente aquele ar
calmo e contido. Começou a fumar, num fingimento desse mesmo ar. Mais
tarde, na década de 90, ficou conhecido por ser o segundo a descobrir o
famoso
"amor para sempre", uma semente petrificada do melhor embuste conhecido,
puro, desenterrado há milénios no deserto Núbio do
Sudão. Foi quando começou a beber.
Educadamente,
peguei-lhe numa palavra, uma das mais pequenas, e pedi-lhe que
trincasse uma pontinha, uma só vogal sumarenta. Naquele espaço curto da
boca, que parece esconder tudo, vi escorrer-lhe um fio de negações
intransigentes, que rapidamente lambeu.
Naquele
tempo ainda trauteava canções. Melodias insípidas que guardou da altura
em que o futuro lhe pareceu feito de pedra. De 4 em 4 compassos,
levantava os pés, ora para a frente, empinando
graciosamente a biqueira, ora para trás, rodopiando o calcanhar sob o
meu
olhar atento. A experiência ensinou-o que só com a estupidez se consegue
aligeirar o ambiente e impedir o dilúvio.
-
Valha-nos a estupidez então. - Respondi-lhe. Ele fitou-me com olhos
bovinos, e disse-me que a depressão não é nenhuma piada. Nem o homem
mais engraçado do mundo a pode fintar.
-
Pensa sempre positivo, sempre, sempre... - Riu-se na minha cara. Não
foi um riso discreto. Havia algum mau teatro ali à solta. Mau, por ser verdadeiro. Nem tudo o que é falso é bom.
- Isto mata-nos a sério. E nem o mais perfeito optimismo nos pode salvar. É verdadeiramente impenetrável.
Nem
quis acreditar que ele me ouvia com atenção. Ele usou a minha palavra, e
acreditei naquele instante que poderíamos ter sido bons amigos. Porém,
tinha razão. Vinte dias depois, apareceu morto em casa. Tinha um buraco enorme no peito, do tamanho do grande desprezo irracional que mata mais que a peste. O médico legista, diz que foi suicídio, ninguém contestou e ficou o caso encerrado.
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