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O escritor contrariado.


Eu era novo e só pensava nas coisas como um velho. Olhava pela janela e atirava migalhas imaginárias aos pombos com os olhos. A Praça da Cidade antiga movia-se com a precisão de um relógio. Uma quantidade astronómica de pessoas desfilava lá em baixo, em círculos aparentemente aleatórios, debicando com os pés, cada paralelo, cada laje de granito da beirada da rua que guardei de memória, marcando a cada passada silenciosa e a cada encontrão respeitoso um compasso raivoso, competitivo. Defronte, os arcos de pedra, indolentes, choravam desgaste por cada nova foto que lhes roubavam. Era inescapável. Mesmo fechada, estores corridos, olhos tapados, cortinas encerradas, a janela da frente queria-me mostrar tudo, e eu queria ver também. Tudo.
Tinha o meu mundo inteiro na cabeça, dois ou três pontos de terra que conhecia bem de alguns livros que ensimesmei, tudo antes do medo, um troço de relva cagada pelos cães dos vizinhos, sete lojas abertas e sem ninguém, quatro pessoas que conseguiria descrever mesmo de olhos fechados, um vislumbre verde de árvores ao fundo, e uma nesga do metro de superfície, que largava e agarrava nesta gente toda, e como vivo num baixio rodeei-me de aquários. Para mim bastava-me, tinha tudo o que necessitava para ser escritor.
Talvez fosse mais pertinente deixar de pensar nisto tudo por agora. As palavras continuavam intactas, pois eu, sim, eu era um anatomista das letras. Tratava-as com aquele cuidado ganho pela falta de experiência, e elas surgiam-me como que por erupção espontânea. Anotava-as num caderno de linhas, de papel munken e capa bordeaux gravada a ferro e fogo, literalmente.
Por vezes receava explicar-me, porque sabia que sem o peso da fama tudo seria inútil. Do exacto modo como não se convive anos a fio com um amigo de infância, até o reencontramos por acaso, e explodirmos. – O meu pai dizia-me que a melhor magia é a de não ficarmos nunca parados. – O meu pai era um tolo bêbado que nos abandonou ainda eu não me fechara. Mesmo assim, tentava fazer-lhe jus às palavras, mesmo depois de morto.
Ontem mesmo, iniciei o retrato escrito da tia Glória. Comecei pelas orelhas. Retratando-a como se ainda fosse da família. Pedi-lhe que viesse até ao quarto, ela veio em sonhos, e descrevi-a logo à entrada da porta, em tiras pequenas de gente. Orelhas, nariz, olho esquerdo, olho direito. Enquanto passava pela covinha enrugada dentro do seu pescoço, mandou-me parar, corrigindo-me.
- Que horror – Comentou numa voz etérea.
- Chiu tia! Daqui para a frente é um instante.
Pedi-lhe a seguir que segurasse a cabeça para trás, esgalhando a cabeleira, para me intensificar a visão dos seus ombros expostos.
Até aí, nunca havia reparado que a tinta do tecto estava toda a descascar, tanto que já nem suportava o peso das teias de aranha.
- Mas tu escreves ou és pintor de retratos? – Quis saber. – Isto não me faz muito bem à coluna filho, o melhor é ficarmos por aqui.
Sorri, satisfeito.
- Não mexa um músculo tia Glória, mais um segundo e faço-a eterna.
Antes que esta acabasse de endireitar o pescoço, já tinha toda a sua história escrita. Saiu de manhã cedo, feita num fumo, com uma resma de si debaixo do braço e uma dor do caraças no pescoço, mas ía contente, e isso é que importava. Mesmo assim, andava preocupado. Temia estar a aproximar-me do ponto definitivo onde é tarde demais para grandes reviravoltas. A escrita agrupava-me tudo o que me era disperso, era o meu último amor e tinha a certeza de que tudo o que criava no seu conjunto e na sua completude estava a salvo das naturezas mais cépticas. Tirando essa convicção fora do normal, era um inválido inútil. A “Bisa” lambia-me os selos das encomendas dos livros, fazia-me a cama e limpava a merda do gato Ajax da sua caixinha cor de rosa. Eu escrevia, escrevia, escrevia pelos dias fora, e de resto era normal, afinal, vivia fora do mundo real.
Pensava muito em sexo, muito mesmo. Sexo! Vá, na pornografia em particular, ou no erotismo do sexo avulso, e na mistura confusa que ambos me faziam. Pensava nas mulheres que se deitaram comigo nas melhores noites, e naquelas com as quais gostaria de me ter deitado se estivesse acordado. O balanço era desequilibrado. Sobretudo nos nomes. E começava aí a confusão. Lembrava-me de quando uma amiga (já se me olvida o seu nome) me aconselhara um livro erótico, ela disse erótico, não pornográfico. Meu Deus! Pornográfico nunca, que os inválidos não tem direito à pornografia natural do mundo: Era o “Duas Vidas sem Importância”, do Cristóvão Altuna, (disto lembro-me). Então, pedi a um primo meu, o Albino, que mo comprasse em segredo, da próxima vez que fosse à rua do Passaporte, e ele comprou-mo sem interjeições. Trouxe-mo num sábado de tarde, em Agosto. Vinha de calções de banho e cheio de pressa. Quase que me acertou com o raça do livro nas fuças, tal era a sua pressa. – Quanto te devo por isto? – Perguntei-lhe antes do vão da porta. – Depois fazemos contas Anísio, tenho a Bela lá em baixo à espera. - Li-o ofegante, nos intervalos das saídas da minha querida “Bisa”, e quando a minha amiga (tomara que me lembrasse do seu nome) voltou cá a casa, disse-lhe que tinha gostado muito, que era muito erótico, muito erótico mesmo. E talvez lhe tenha piscado o olho até. Ela sorriu e foi à vida dela, mas eu tinha quase a certeza que o livro era pornográfico. Pelo meio da leitura, quis escrever-lhe o corpo pré-púbere num conto curto, mas ela tinha os seus compromissos de Verão também, e eu, receei o plágio ao Altuna com a pressa. Quando acabei de o ler, naquela tarde em que ela apareceu por aqui, informei-a que já o havia terminado, que lho oferecia, e disse-lhe que era mesmo erótico à brava, muito, muito erótico. Ela agradeceu a oferta e eu agradeci-lhe a sugestão. (Porque raio não me lembro do seu nome?)
Soube mais tarde que ela até o aconselhou a muitas outras amigas. Aquelas com as quais eu também escrevia as belezas gratas da pornografia adolescente, escritas num vulgar papel IOR. (para não abusar)
Sempre que falávamos pelo telefone, ela destilava a mesma frase: É um livro de um erotismo único, libertário, transgressor. E talvez lhe tenha piscado o olho, nesses dias também.
Mas, todas as minhas pequenas viagens, contadas e bem consideradas, cerca de 23 horas do dia, 165 horas da semana, 644 horas do mês, eram passadas sob uma colcha bege, dois cobertores de flanela e dois lençóis do mesmo material. A “Bisa” instalou-me uma TV monocromática por cima do toucador das meias, em frente à cama. Mandei que a tirassem ao fim de um dia. Depois de dez minutos acesa, sentia vómitos e não lhe queria dar mais trabalho. A minha televisão era a janela.
Faltava pouco para a cidade aparecer atrás do monte de janelas e betão. Primeiro surgiriam os edifícios mais velhos, depois todo o recorte das gruas e do fumo e, finalmente, o mar. O mar estava sempre presente nas vistas ocultas dos meus olhos físicos. Felizmente que, nem só com estes globos gelatinosos vê o Homem.
Nessa manhã apareceu a Hilda cá em casa. (Lembrava-me sempre do nome da Hilda. Escrevi para cima de três contos à sua imagem) – Eram então dez horas.
Então, depois de uma breve tremitação sobre o meu estado de saúde, entregou-me um papel pomposamente selado com o lacre da venerável ordem de S. Francisco, que me acreditava como orador convidado para a singular ocasião da procissão das cinzas. O impossível até acontece de vez em quando.
- Querem que sejas tu a falar nesse dia. Insistiram nesse ponto. Até queriam vir cá a casa pessoalmente.
- Não pode ser. Eu não posso. Explicaste-lhes porquê?
- Não expliquei coisa nenhuma. Sou uma simples mensageira, e apenas porque o meu pai é da ordem, mais nada. Ainda assim sou da opinião de que deverias aceitar.
- Achas mesmo? 
- Não queres ser escritor? Pronto. Aparentemente, alguém já te considera assim.
- Mas devo aceitar...não sei. Escrevo tão mal.

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