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É assim que se apanham formigas.


Não são revistas literárias per se. Ou revistas só de imagens, só de banda-desenhada, só de arte pela arte, ou por aí fora. Poderão até ser revistas temáticas pela natureza de quem se agrega para as criar, mas que não se definam nunca, por passarem por meros panfletos artísticos glorificados, carregados daquela gosma hormonal dos egos enchidos num verbo nulo. Muito embora também as haja assim.
Nem tampouco se poderão resumir a simples punhados de bom dinheiro deitado fora, ora impressos em papel couché e bem cosidos a arame, quando calha, ora mais iconoclastas, lavrando páginas ásperas em papel quase de merceeiro, ligadas por linhas de fio de ráfia. Algumas poderão até conter sucessões de imagens e textos soltos, desconexos, muitos até perturbadores, insanos, ainda que, sobre a ideia de se estar são nestes tempos, muitas vezes a insanidade de quem tem algo para dizer, fará sempre muito mais sentido, do que o ser correcto e direitinho que segue os cus dos Judas. No fundo, trata-se de tudo isto, e muito mais.
Trata-se quase sempre, de um grupo aleatório de gente despretensiosa, criativa, assertiva, viva suponho, que um dia decide juntar esforços, exprimir-se e fazer nascer uma fanzine. 
E eu tinha esta ideia, errada, que só aqueles que viveram nos anos 70 e 80 do séc. passado saberiam do que isto se tratava.
Na verdade as fanzines proliferam nos dias de hoje, algumas delas, muito bem estruturadas, com designs cuidados e grande qualidade de conteúdos, carregadas de ideias frescas e abordagens satíricas, que, de outro modo provavelmente jamais veriam a tinta do prelo. Existem-nas tão boas, que quase apetece casarmo-nos com elas. Outras quiçá, estarão um ou dois passos à frente das desbotadas fotocópias a preto-e-branco com se faziam nos velhos tempos, old school, não deixando por isso, de terem o seu devido valor e atraente irreverência. Por vezes, a lei matemática de que menos é mais, torna-se numa fórmula para a qualidade, e é na fuga propositada aos estereótipos, onde se encontram os melhores tiros certeiros.
Mas, interessa-me falar de uma destas fanzines em particular: FLANZINE, o nome como muitas vezes acontece com estes projectos, nasce de algum devaneio sincopado, neste caso concreto, originado das mentes inquietas de dois estranhos, Luis Olival e João Pedro Azul, cujo único entrosar se comungou sempre no Facebook, pois não existe ainda qualquer registo até hoje de já se terem conhecido pessoalmente. E foi na idêntica percepção de ambos de um vasto mundo de talentos atirados ao acaso em murais mais ou menos obscuros, e que por coincidência, poderiam ou não ser do conhecimento comum, que tudo se amanhou. Daí até ao flash da criação, foi um saltinho. Porque não juntar esta gente toda num único e singular espaço muito "docinho"? - Uma autêntica fábrica do Willy Wonka para mentes diabólicamente criativas. - Assim foi, e o resto são histórias da carochinha. E ainda que o Luis quisesse manter a ideia restrita ao mundo virtual, talvez por ser aí o seu verdadeiro habitat, o João, em boa hora, viu o mérito de a extravasar para uma edição em papel. É que a malta gosta de sentir os deslumbres nas mãos. Cheirá-los, ouvir-lhes o restolho do papel, e até, quem sabe, mordê-los com os dentes. 
Em Setembro de 2013, surge então a Flanzine #1 - MALA, porque a escolha dos temas, se vai regendo pelo mesmo inconformismo com que os autores contactados as abordam. E são tantos já, mais de cem a esta data, um número assaz redondo e que enche a BOCA, que, nesta louca dinâmica dos seus criadores, acabaria por ser o mote do #3, despontando este à luz do dia já em Março deste ano, em regime de parceria a dois, entre todos os autores, e com direito a pré-lançamento durante o certame das Correntes D'escritas deste ano.
Antes disso, ainda houve tempo para o MEDO, o #2, impresso em Dezembro de 2013, que inteligentemente fez cumprir o seu papel evocativo de todos os possíveis medos destes tempos medonhos, sob a forma de textos, fotografias e ilustrações que despentearam o espírito a quem os teve sobre os olhos.
A mais valia da FLANZINE, é certamente a excelente qualidade dos trabalhos publicados, mas talvez seja a variável da mistura o que mais a valoriza. O seus autores chegam das mais diferentes áreas: a literatura, a fotografia, a poesia, o teatro, a música, a ilustração, o cinema, e depois seguem todos para o programa de centrifugação. O resultado final, invariávelmente, é muito atractivo. Pois é nesta fusão, não só de géneros como também de protagonismos; novos talentos, desconhecidos absolutos, consagrados, primas-dona, lançados a um mesmo espaço pelo repto do seu editor, o João, que a FLANZINE vai crescendo a olhos vistos. O evento nas Correntes, muito para isso contribuiu.
Em Junho deste ano sai o #4 - CARROSSEL, perfazendo um ano de edições, acompanha-lhe o lançamento, em Lisboa, o evento interventivo da leitura de um manifesto, em frente ao panteão nacional, escrito e lido pelas mãos de alguns dos autores participantes, no dia simbólico do 10 de Junho, dia de Portugal, e que esteve subordinado ao mote do poema de Mário Cesariny "Queria de ti um país". - Foi quase um sucesso estrondoso. Quase por que, a voz das fanzines, não nasceu, nem nunca nascerá para ser parte do sistema. A FLANZINE, digna e orgulhosa tarefeira desta tradição, existe, e certamente que continuará a existir por muito mais tempo, para esbardalhar o que está estabelecido, para destabilizar o sistema, agitar as águas, e, em última análise, continuará também a servir a grata função de dar voz a muitos novos autores, misturados em pé de igualdade com outros, já mais expostos aos olhos do público, mas que também encontram aqui um lugar certo para se exprimirem.


Para contacto sobre como adquirir um ou mais números da FLANZINE, tornar-se assinante, ou qualquer questão pertinente, enviem pedido de informação para: zineflanzine@gmail.com

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