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Agora lês-me, agora já não me lês.




Não gosto que me vejam a ler, agora assim de repente, julgo até que nem gosto que saibam que eu leio. Prefiro que me imaginem analfabeto, velhaco e estúpido. Até estimulo a noção de ser uma mente romba, quase obtusa. Torna tudo tão mais cómodo para mim. Imaginarem-nos simplórios é um descanso. Nuns quantos vazios à minha volta construo maciços com os livros que ainda guardo, os mais fortes, onde depois levanto o que me diz mais. E ninguém tem nada a haver com isto.
Gosto de ler, e creio ser tão desnecessário explicá-lo como tentar demonstrar porquê que não gosto que me vejam a ler.
Apetece-me que seja uma coisa só minha, íntima e preciosa, livre de justificações a terceiros, longe dos olhos cheios de juízos das multidões. É uma masturbação do intelecto, e estas massagens necessitam de paz e solitude. Esta maravilhosa clausura, concede-me um acesso privilegiado a tantos mundos, que posso guardar à minha maneira, sem chamar a atenção para o que é óbvio. Poucas coisas são assim tão especiais; Talvez o amor, se me apetecer ser mais metafísico. - Mas qual? - Também não carece que o definam, cada um há-de ser de cada um, e este é o meu, e não quero que ninguém o veja nu.
Tenho muitos amigos que lêem e espalham isto em voz alta, e dão conselhos com afinco acerca de futuras leituras, e que até escrevem coisas sobre o que leram, e depois partilham o que escreveram sobre o que leram. - O que é perfeito. Que seria dos pequenos escritores sem esta gente toda a ler, e a escrever sobre o que leram? Decerto definhariam antes do tempo. - Não tenho nenhum amigo que seja crítico literário, mas, hoje em dia pode-se ser muitas coisas, basta querer muito. Também tenho alguns amigos que sabem sobre muitas coisas, inclusive, sobre como se configura o amor e sobre o que se deve ou não de ler.
Eu não. Sou incapaz de o fazer. Sinto cá dentro um bom egoísmo sobre os meus hábitos com as páginas dos livros. Não sei de nada e não tenho nada para dizer sobre o assunto. Não há nada de relevante que se possa escrever sobre o que se lê, quando se gosta enobrece-nos, e quando não, segue-se em frente. - mas ficar em silêncio parece-me também uma cumplicidade desleal. Por isso falo sozinho sobre o que vou lendo, e aquilo que digo é tão grande que podia bem encher-se de importância.
No fundo acaba por não importar sobremaneira. Leio, para mim isso já é uma riqueza enorme, e de qualquer modo, continuando a ler, ainda que às escondidas, como um miúdo travesso que vai fumar para o fundo do quintal, atrás do galinheiro, apraz-me imenso, fico nada aborrecido por não me saber errado ou certo, só contente por não haver ninguém a meter o nariz nesta história. 
De tantos livros lidos, relidos, meios-lidos, quase-lidos, nunca lidos, insistidos, restam-me mais certezas e esperanças aí depositadas, do que em qualquer outra actividade que me acompanhou ao longo da vida, amor incluído.
Curiosamente, todas estas coisas aparentemente soltas, têm um fio condutor, e esse é: que na vida de cada um, a leitura deve de ter o seu tempo, só é pena o tempo de vida ser tão curto.


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