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O Poder mágico do Flan

Agora que o lançamento deste maravilhoso fanzine já passou (foi ontem, não estiveram lá?) já posso divulgar aqui, a minha modesta participação no primeiro número. O tema era: Mala, mas a doçura das palavras e imagens que o perfazem, não se fecham no trinco de nada ou ninguém. Leiam-no nas vossas mãos, que assim é que vale a pena. Aqui: https://www.facebook.com/pages/Flanzine/194519150717997?fref=ts por mensagem privada.
Entretanto, por entre tantos textos tão bons que por lá se escondem num molho adocicado, aqui está o meu:


"Por detrás do teu Rosto já não existe Ninguém."
Inês estava ainda visivelmente abalada ao fim da tarde, apesar de o acidente ter ocorrido de manhã cedo. Ora o contava ao telemóvel, ora o dizia de viva voz a todos os colegas no trabalho, o que nunca fez, foi largar aquela mala das mãos durante o dia todo. Era a âncora que a prendia à vida. Iam as duas a par, ela e a falecida, e quis o destino que uma parasse e a outra não e, que a emproada se salvasse e a desataviada viesse a ser brutalmente colhida pela morte, travestida num chavão: escorregar não é cair, mas é meio caminho.
Os sonhos do Xavier imensos, mas acontecia-lhes o mesmo que aos balões, ora levados pelo vento, ora esvaziados. Quando a mãe lhe perguntava à frente das vizinhas o que queria ser quando fosse grande, ele respondia categórico: “Escritor”. As mulheres riam-se e a mãe exclamava: “Ai, este rapaz, este rapaz!” Não era para o achincalhar, antes para o proteger. Onde é que se vira um rapaz que andava descalço e que não estudaria mais do que a escola primária a escrever livros. Isso era para doutores. O Xavier ria-se com as mulheres e, no entanto, sabia que com ele as coisas mais evidentes seriam conquistadas pela imaginação, transformando-se noutras que começavam a piscar os olhos às palavras do futuro. Por exemplo:  – Tu amas-me, tu amas-me... – Suplicava-lhe Inês. - Eu sei que me amas, e a ideia de poder vir a morrer sozinha, mata-me! – Tudo se pode resumir a esta frase, como ela lhe dissera e sobretudo, quando lhe dissera: "ainda hoje vi uma pessoa ser esmagada na cabeça." - Xavier queria acreditar que sim. – Claro Inês. É como dizes, amo-te, pronto. – Respondeu-lhe friamente. A saber: ia ela, a sua mulher, caminhando ao lado de uma outra, a qual daí a nada estava no chão, morta de todo, "com a cabecinha esmagada" por uma carrinha daquelas de caixa aberta, que ia esvaziar sucata algures. O condutor ainda quis apitar, mas não a viu lá de cima. Corria-lhe um medo estranho pelos olhos, e fugiu. – Filho da puta! – Remarca Inês. - Vi tudo, com estes mesmos olhos que te vêm agora. – Diz-lhe, mantendo a mala firmemente pregada debaixo do braço. – Fugir da cena de um acidente, onde já se viu? Estes sucateiros são todos uns ilegais. Roubam tudo a toda a gente, até a Deus eles roubam. Vi claramente, duas cruzes enormes de bronze na traseira da carrinha. Lembras-te do que te disse há dias sobre o assalto da Misericórdia? Foi este assassino, de certeza. Sacana de ladrão. Pior, um covarde! – Covarde? – Covarde claro, o grande fuinha. Nem parou para se certificar se eu estaria bem. Teve medo o cabrãozinho. Mas isto foi um milagre Xavier, sabes? Um sinal de Deus, que me fez parar naquele passeio para retocar a maquilhagem, de outro modo...Já imaginaste? – Sorriu-lhe cheia de certezas divinas. – Talvez. O que não percebo é porque sentiste necessidade de te pintares a caminho do trabalho. – Ora essa. Porque não? – Retorquiu. - Tu trabalhas num armazém de produtos congelados Inês. Talvez seja por isso. - Deu há pouco na televisão – continuava ela indefectível - e amanhã vem no jornal, de certeza. Foi horrível, coitada da pobre Celina. Deverias escrever qualquer coisa sobre isto Xavier. – Escrever o quê? – Sei lá eu o quê. O escritor és tu. Qualquer coisa poética, que engrandeça a infeliz da Celina. – Depois vejo o que consigo fazer. – Anuiu desprovido de confiança. – Inês? – Sim querido, o que foi? – Nunca te pintas para mim? Nunca te vejo com uma pontinha de batom, ou com aquela coisa que vocês põem nos olhos. Agora que penso nisso, nem sequer me lembro de te teres maquilhado no dia do nosso casamento! – Exclamou. – Vou buscar o álbum... – Ela agarrou-o pelo braço. - Que queres tanto ver que já não esteja à vista de todos? E tu. O grande escritor, que nunca me dedicou um único poema. – Não estarás errada, mas eu também não. – Adiantou. – Se calhar é altura para te contar uma coisa muito importante. Posso? – Desembucha. – Anavalhou ela. – Sim. Mas podes largar essa mala por um instante e dares-me atenção? – À vista de todos! – Pensou depois. - E quantos serão todos? Foda-se! – Não insistas em tolices Xavier. Tu amas-me eu amo-te, só a ti. Que importa o resto. – Importa, importa. Quero saber. – Não sabes já? – Descobriu-se por completo, livrando-se das cobertas e dos lençóis, pôs-se em pé, nua, sobre a cama. – Olha para mim. Isto não te chega? Anda cá e mandamos foder este dia. – Ele recuou, saiu da cama, chegou até à parede, deu meia-volta e voltou à entrada da porta como um carrinho de corda pronto a disparar.  – Ainda queres falar? – Por instantes Xavier virou o rosto para o lado. Os homens já não sabem se são anjos ou demónios, e se mulheres como a Inês devem de ser evitadas ou veneradas. – Por causa de ninharias, de nada! – Pensou. Devagar, muito devagar ela prostrou-se na cama, como uma dádiva. - Vais fazer-me esperar? – Ridículo! – Exclamou Xavier – Olha bem para ti? És reles. Comportas-te como uma puta. Falas de Deus para trás e para diante, e no fim, só tens luxúria a correr-te nas veias. Num minuto perguntas-me se te amo, e no outro expões-te assim, como uma cadela impudente. Não passas de uma putazinha não é? E larga a merda dessa mala de uma vez por todas! – Gritou. – Como te atreves Xavier? Depois do que passei hoje. Podia ter morrido. - Que absurdo. Mentiras, traições. Só te peço que me ouças uma única vez. É absolutamente vital que te conte isto... – Olha o senhor “escritor” a falar cheio de boas intenções. Que querido! Sabes que mais, Xavier? És um tolo! Não me digas mais nada, não quero saber. – Tu já sabias? Sim, tu sabes. – Ela riu-se. – Cornudo! Não vales mesmo nada. Faço-te uma promessa aqui e agora. – As suas sobrancelhas franziram como era habitual quando ficava muito séria. - Se houver um paraíso na terra, é aqui, no meio destas coxas, mas agora é um pouco tarde para ti meu querido, nunca o saberás verdadeiramente. – Ah sim? – Respondeu-lhe, claramente irado. – Pois eu também quero que saibas uma coisa. – O quê? Desembucha de uma vez seu paneleiro, seu covarde...anda. – Todos os livros que publiquei não passaram de linhas e linhas de frases roubadas a outros. Quero dizer-te que sou uma fraude, e que jamais poderás gabar-te às tuas amigas, de te teres casado com um intelectual, com um artista. Posso dizer-te que a minha mãe tinha razão, e bem, esta é a minha vingança pelo que me fizeste. - Colocou as mãos no rosto, em vergonha extrema. – Posso dizer-te também que até tu tens razão. Eu não valho mesmo nada, pois não passo de um simples sucateiro.




Casimiro Teixeira
2013







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