No dia em que Gustavo cantor chegou a este mundo, fazia tanto
calor, que os candeeiros da rua, ainda quentes de trabalharem a noite inteira,
derreteram, fazendo poças de luz em cima dos paralelos escaldados.
Gustavo chegou tão pontualmente como um nascer do sol. A sua
mãe ainda estava em roupão de banho e com a cabeça cheia de rolos quando ouviu
uma cantoria muito miudinha subindo de mansinho da carpete, e quando olhou para
baixo viu, cheia de surpresa, um par de olhos muito claros e brilhantes, azul-bebé
como o primeiro céu da primavera, a sorrirem-lhe felizes, no meio de uma voz que
não era deste mundo.
Há a certeza do
imortal quando assim um filho nos sorri. O coração pula-nos no peito
e o mundo para de rodar quando nos olham, sentimo-los
donos de nós e dos nossos sonhos, e é isto que faz o mundo parar e que o faz
também girar.
Mas como é possível que uma criatura assim tão pequena,
consiga nascer a cantar a plenos pulmões? – Pergunta o pai muito espantado com
a visão do filho cantor, enquanto coçava a cabeça com os seus dedos largos.
Ora, não é preciso ser nenhum cientista para perceber estes
mistérios, - responde a mãe de imediato. – Tu cantas tanto e tantas vezes, que
a tua voz entrou-me pela barriga dentro, entranhou-se-lhe no coração, passou-lhe
pelos pulmões, e por fim, chegou-lhe à boca. Está mais do que visto. – Pois
foi. Foi isso, de certeza. E agora, o que fazemos? – Continua o pai. – Pode ser
que seja uma coisa passageira, que lhe passe com o tempo. – Diz a mãe tentando
sossegar-lhe o espanto. - Tu também nasceste com uma cabeleira farta e agora és
tão careca como um pêssego. Isto com o tempo passa-lhe.
A mãe parecia ter acertado em cheio, pois logo de seguida, tão
rápido quanto nasceu e cantou, mais depressa deixou de o fazer. Perdeu o pio,
ronronando apenas os sons normais de um miúdo acabado de nascer.
Passaram-se algumas horas deste quase silêncio total, estando
os dois a seguirem com grande atenção aqueles olhos de nuvem, que não paravam
quietos e aquela boca tão pequenina, que nunca se fechava. De repente, Gustavo
desata num berreiro tal que até lhes alarmou o sossego da alma, fazendo-os
saltarem fora dos próprios sapatos. Mas desenganem-se os que pensam que o
pequeno berrava num choro comum qualquer. Não senhor. Em vez de chorar por tudo
e por nada, como assim fazem os bebés normais, Gustavo cantava, cantava bem, e
cantava muito, muito alto.
Será que tem fome? – Pergunta o pai – Já lhe deste de mamar
não deste? – Ainda há pouco, tu viste. Fome não é de certeza. – Então, terá a
fralda suja? – Não sejas tonto, foste tu quem o mudaste nem à cinco minutos. –
Então, então? – Deve de ser do calor, só pode. – Mas porquê que ele canta? –
Sei lá eu porquê, preferias que ladrasse? Mas a culpa disto é tua, de certeza.
Olha, o melhor será chamarmos um médico. – Minha? Como é que a culpa pode
ser... Ah, pois...
O pai sentiu-se estranho, porém, calou-se muito caladinho,
como quem guarda um segredo. Três meses antes tivera em sonhos a revelação de
que o filho iria ser um grande cantor de ópera. Com uma grande barriga a
descer-lhe volumosa do peito, uma boca enorme de lábios finos e um bigode longo
e farto, virado do avesso, uma, duas e três vezes, como convêm a todo o bom
tenor. Acordou sobressaltado nessa noite, e ademais encharcado em suor. Na
altura achou muito estranho aquele sonho, pois tanto ele como a mulher gostavam
sobretudo do Tony Carreira, que ficava na distância mais longa de um tenor de
ópera como o fim do horizonte quando o queremos agarrar.
Mais tarde, quando foi receber o médico à porta, teve a sua confirmação.
A primeira coisa que este disse ao entrar foi: Que engraçado, é tão raro
encontrar pessoas que gostem de ópera. Eu também tenho este disco que está a
tocar. É o grande tenor Massini Massano,
não é? – Diz o médico, limpando a testa com um lenço de bolso. Ao que o pai do
Gustavo responde: Não senhor doutor, este que está a ouvir, é o meu bebé, o
Gustavo.
O médico mal podia crer. O calor era tanto que julgou estar
com alucinações. Estaria aquele homem disfarçado de pessoa normal ou seria
mesmo maluquinho de todo? Que tolice pensar que um bebé recém-nascido pudesse
cantar daquela maneira. Perguntou-lhe a que horas o menino tinha nascido e
depois cumprimentou a mãe da criança, com uma vénia. – Foi um regalo de nascer.
– Diz a mãe. – Tinha a mão na minha barriga, olhei para o lado, e quando voltei
a cara, ele já tinha nascido. Saiu como uma gelatina, direitinho. O pior de
tudo mesmo, é esta cantoria interminável. Ajude-nos senhor doutor, peço-lhe. - Onde
está ele então? – Pergunta o médico - Vamos lá observar o rapazote. – É só
seguir esses guinchos senhor doutor. Tivemos de fechar a porta do quarto que já
não aguentávamos mais.
Como? – Exclamou o doutor muito espantado. – Isto é poesia
pura minha senhora! Se os poetas pudessem escrever com a voz, seria assim. Guinchos?
Francamente.
Isto terá cura senhor doutor? – Pergunta o pai.
Cura? Mas que coisa. Alguém pensará em curar as cores de um
arco-íris, o voo das borboletas? O senhor sugere que se tratem as ondas do mar com
pastilhas ou os campos floridos com injecções? Esta agora. Será preciso
curar-se o brilho da lua ou a suavidade do vento no rosto, num dia de calor
como este? – Não, não...claro que não, - responde o primeiro, muito atrapalhado
- mas isto não pode ser normal, não acha?
Bem... vamos lá ver.
Quando o médico olhou finalmente para o Gustavo ficou
hipnotizado por aqueles olhos profundos de um azul impossível. Prontificou-se a
exclamar, gaguejando: – Esta criança é um milagre...um anjo! Se acho normal?
Não, claro que não acho normal, mas vocês são estúpidos ou quê? Normal é aquilo
que se vê todos os dias, este rapaz...bem, este rapaz...Ora bolas! Mas não estão
a ouvir este canto? Os anjos ensinam aqueles que estão presos no chão a
distância exacta entre a terra e o céu. O vosso filho decidiu faze-lo com a
voz. Normal, normal? Isto é extraordinário. Deveriam de estar orgulhosos, isso
sim. – E estamos – interrompeu a mãe – estamos muito orgulhosos do nosso
pequeno tesouro, não estamos querido? – Continua ela, depenicando o marido na
barriga – só temos pena que ele não cante umas músicas...assim mais conhecidas,
entende? – Meu Deus! – Suspirou o médico – Escreves mesmo por linhas tortas. Tenha
juízo minha senhora. Este miúdo está são como um pêro, o facto de ter nascido
há poucas horas e já cantar como um tenor lírico, torna-o único na história da
humanidade. Lamento, mas para isto não há cura nenhuma, e mesmo que houvesse.
Mesmo que houvesse, não deveria haver. Estão por vossa conta. Tentem não
estragar este milagre, sim? – Saiu logo depois, lançando-lhes um ar de profundo
desprezo.
Ficaram os dois sozinhos com Gustavo, que durante todo este
tempo não parou de cantar, desfiando de uma assentada todo o repertório de Massini Massano, de fio a pavio. Quando
por fim parou, parou porque tinha fome, e estava na hora da próxima mamada.
Desde esse dia, o dia em que nasceu, ainda não parou de
cantar. Médicos, cientistas, investigadores de todo o mundo, até padres do Vaticano,
especialistas em milagres, vinham vê-lo regularmente; Gustavo, o bebé cantor,
tentando descobrir porquê que este cantava tanto e assim; ópera apenas.
Chegavam com um ar de surpresa e admiração, partiam todos cabisbaixos sem
solução à vista, mas maravilhados com a sua voz. Um físico da NASA concluiu que
tal fenómeno só podia ser causado pelo alinhamento dos planetas que causou
extremos raios de sol ultravioletas no dia em que ele nasceu, mas ninguém lhe
ligou nenhuma. Claro que houve outras
tantas tentativas de explicação, mas cada uma delas mais sem pés nem cabeça que
a outra. Um vizinho chegou a dizer que ele cantava, apenas porque lhe apetecia
cantar, e mais nada. Ninguém pareceu discordar.
Com cinco anos apenas, Gustavo cantou para uma plateia de mil
pessoas ilustres: reis, príncipes, presidentes e celebridades. Quando terminou,
fê-lo porque já não aguentava mais a vontade de ir fazer chichi. Não havia um
par de olhos secos naquele auditório, ficaram todos tão emocionados com a sua
voz, que o consideraram o maior cantor de ópera de todos os tempos, um feito extraordinário,
especialmente se concedido a alguém a quem ainda não haviam nascido todos os
dentes.
Os seus pais também estavam na plateia, mas, sem que ninguém
notasse, disfarçavam dois pequenos auscultadores nos ouvidos. Vá se lá saber o
que estariam eles a escutar naquele momento. Estavam felizes, é o que
interessava, e Gustavo também, quando retornou da casa de banho. Até ao último
dia da sua vida, nunca proferiu uma única palavra que fosse falada.
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