Somos um país pequeno, e por vezes munimo-nos de pequenos ódios, que talvez sejam grandes demais para serem assim sentidos, com a cabeça quente. Alguns até se justificam pelo medo em que vivemos, ou não se justificam de todo, considerando que o ódio não passa de uma emoção, logo, cabe-nos a todos te-lo no peito a bel-prazer, mas nunca na razão.
Refiro-me concretamente aos comentários de Isabel Jonet, a senhora que se encontra à frente do Banco Alimentar Contra a Fome, e que afirma que a pobreza em Portugal é
conjuntural, tornando-se, da noite para o dia o mais recente ódio de estimação nacional, pelo menos, no que às redes sociais diz respeito.
Ora, a
dimensão do disparate torna clara uma coisa fundamental: ainda não
percebemos.
Aprovo
cada ponto e virgula do discurso da Isabel Jonet, independentemente de quem ela é, da instituição que representa ou da condição monumentalmente desastrosa do seu jeito insosso de o dizer. Sobretudo, e isto é importante referir, no âmbito igualmente disparatado do insípido programa onde foi proferido. Aprovo-o ainda assim.
Calma, não levantem ainda as armas ou os ânimos. Essa é a raíz principal do desajuste dos nossos pequenos ódios. Pareceu-nos, a um dado
momento que poderíamos ter tudo, comprar imenso, possuir muito,
mostrar mais. Nós, somos a geração do deslumbre, do desvario. Ainda que fundado e financiado pelo desaviso do engano, fomos e somos ainda essa geração. Porque ainda não percebemos, mas lembramo-nos - Basta pensarmos com a razão em vez do medo, porque
vimos os nossos pais fazê-lo - Vimo-los a reinventarem novos pratos a partir de
restos, a fazerem durar um par de sapatos, a tomar bem conta de roupas usadas, para que pareçam sempre novas, a juntarem, a
amealharem. Eu vi os meus pais a fazerem-no, e estou certo de que vocês também. Eu não conhecia muito bem a dita Isabel Jonet, agora que me apercebi, não gostaria de a conhecer melhor. É desarticulada na forma como fala, cheia de maneirismos de velho-rico, um pouco até presunçosa por abordar tais tópicos com aquele desplante de quem os experimentou. Cai muito mal esta nódoa, no pano sangrado de uma nação que tropeçou na condição digna de viver e sobrevive apenas. E mal.
Obviamente que, de todos os lados se levantaram as vozes iradas de quem já pouco consegue aturar da classe governante, quanto mais desta sensaborona mulherzinha, que nem se apercebeu dos ódios vivos que atiçou com as suas palavras mal edificadas. Eu fui um deles, confesso.
Todavia, existem verdades no que ela disse. Uma série enorme de verdades que a minha geração esqueceu, que os medos destes tempos absurdos, ajudaram a enterrar. Não pode ser assim. Teremos simplesmente que reaprender bons hábitos (e passar
testemunho)...Temos de reaprender sim. Quero acreditar que o lado bom de isto tudo que estamos a passar vai ser esse e não outro. Não pode ser a posição sobranceira do "eu aqui" e os pobrezinhos lá em baixo. Os pobrezinhos agora somos nós. Já não é "aquela gente" como o António Lobo Antunes lhes chamou na sua crónica: "Os Pobrezinhos."
Ora, eu ouvi isto todos os dias da minha educação: são coisas que qualquer pai (e avó) competente repete aos seus filhos. São ilustrações simplistas de uma hierarquia de prioridades saudável.
Ora, eu ouvi isto todos os dias da minha educação: são coisas que qualquer pai (e avó) competente repete aos seus filhos. São ilustrações simplistas de uma hierarquia de prioridades saudável.
Desse país, em que os meus pais cresceram, das senhas racionadas no
tempo da Guerra ao medo dos filhos terem de ir para uma guerra colonial
injusta e fora de tempo, já não restam mais do que impressões saudosistas, em que
nem todos tinham bife para comer à mesa. A guerra agora é outra, mas igualmente letal. A democracia liberal trouxe-nos isto, e
muito mais. Trouxe também alguns comportamentos de excessos, sim, e nós sabemo-lo bem.
Deveríamos fechar, pelo menos, metade dos centros comerciais, proibir o
comércio de abrir aos domingos, construir parques e zonas verdes em
todas as cidades, acabar com a televisão depois da meia-noite e desligar
a Internet à mesma hora, metendo toda a gente na cama a ter orgasmos e a
fazer filhos uns a seguir aos outros, que o país morre aos poucos também por falta deles.
E mais não digo senão isto: Temos de nos deixar de ser carneiros, pensar com a cabeça e não com os ódios diários.
A crónica a que se refere do Lobo Antunes, não é uma crónica, mas um excerto do seu Livro de Crónicas e foi escrito há mais de vinte anos.
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